Já não é ao corpo que peço as contas de uma vida mas à memória do vento do tempo, esperando que o vento passe e deixe o tempo do corpo sossegado.
Do corpo se fez vento que passou pelo tempo sem a noção da relatividade de ser corpo e menos ainda de ser tempo. E todavia vagueia entre o ponto de ser e de não ser, de estar e de morrer.
Do vento se fez nuvem cobrindo as madrugadas de uma melancolia fina enquanto não surgem no horizonte os arreios dourados do carro do sol. Desperta a beleza da luz intemporal das órbitas da juventude e do envelhecimento, é bom arrecadá-la na casa-forte do coração. Sob as pálpebras perdura o tónus interior dos mistérios da alma, ela vento para além do corpo.
Assim passam na pressa de passar grandezas e misérias do viver, destroços espalhados do sofrer, composições sinfónicas do prazer. E a felicidade à espera do seu tempo, cansada de esperar.
Na consciência do equilíbrio do nada (outra forma de equilíbrio) pergunto-me que vento é este a fustigar o corpo, a castigá-lo dos pecados existenciais. Toda a matéria guarda em si a luxúria da vida, forma embriagante de a amarmos, correndo como lava de ouro em seu cadinho.
Esse vento do corpo segue a rota dos grandes rios no suposto encontro com o oráculo que me fale do significado da existência, para que eu possa, enfim, encontrar o meu significado como corpo.
As raízes de séculos agregam o caudal do tempo que alimentará novos séculos renovando o permanente mistério da criação. Deste modo, lentamente vou morrendo no passado sem me dar conta de ter esgotado a vida num somatório de coisas inúteis, formando um arco de solidão a redimir o vazio pelo conteúdo dos meus sonhos.
Lisboa , Outubr0 2013
Muito bonita a melancólica prosa poética de António Sales. E a melancolia escrita, sendo bela, redime a si mesma e se faz, e se faz mesmo triste porque compartilhada.
Parabéns!
Rachel Gutiérrez