François Hollande não pára de nos surpreender. Algumas pessoas, mais cínicas, talvez até o achem quase divertido, mas quando se analisam os resultados da sua intervenção política é difícil conter a indignação, mesmo a um acérrimo membro do Partido Socialista francês. Os dramas da sua vida pessoal, qua devem estar a servir de motivo para inúmeras graçolas, só confirmam a ideia de que se trata de uma pessoa com pouco carácter. É o tipo de pessoas que, em princípio, nunca deveria ocupar cargos públicos, nem outros quaisquer que requeiram um mínimo de seriedade (haverá algum cargo que não necessite de seriedade?), quanto mais chegar a Presidente da República de França.
Quando se desenvolvem raciocínios como o que ficou expresso no parágrafo acima é frequente receber-se a acusação de inveja. E ouvir-se uma lista de nomes de personalidades, dos mais variados quadrantes políticos, nos vários países (olhem para Portugal!) que tomaram sistematicamente atitudes semelhantes às de Hollande. Nada disso, incluindo a acusação de inveja, apaga, nem sequer disfarça, o essencial, que são estas atitudes que contribuem para o aprofundamento do fosso entre aquilo a que chamam a classe política e o povo, que aspira a viver melhor o seu dia a dia. Para tal, está cada vez mais claro, este precisa de não estar à mercê de políticos como François Hollande.
É verdade também que factos como estes, ocorridos durante a governação de Hollande e de muitos outros políticos, apontam directamente para as fraquezas da democracia representativa. Um sistema em que um certo número de personalidades, a maioria das quais, para não dizer a quase totalidade, é proveniente de meios privilegiados, orienta as suas vidas para dirigir as vidas dos outros, procurando apoiar-se nas forças dominantes da sociedade a que pertence, mesmo quando em público as critica. Este sistema conduz fatalmente a situações, senão de castas, pelo menos de estratos sociais diferenciados, em que o superior procura manter a distância dos que estão abaixo. As disputas a espaços para decidir quem vai ocupar os lugares em que alegadamente se tomam decisões não eliminam o essencial. Os privilegiados têm vantagem na competição e tendem sempre a defender … os seus privilégios. E a viver como tal. Em França, na Europa e no resto do mundo.
Ó João,
Tudo bem, no que se refere à actuação política de quem se diz “de esquerda”.
Já quanto à apreciação do carácter de alguém pelo número de camas (e outros lugares de fruição erótica)frequentadas, ou pelos seus sobressaltos afectivos (cousa de dificultosa aferição), tal identifica-se, na minha opinião (que, neste caso, não é modesta nem pretensiosa – tão-só muito pensada, firme e inabalável) com a puída bitola da avaliação da “honra” dos machos, sobretudo se filhos-de-algo ou de elevada e burguesíssima “posição social”, estabelecida pela referência ao grau de castidade ou de errância erótico-afectiva das respectivas esposas. Para usar da mais rigorosa terminologia científica e filosófica, nada mais apropriado que indagar, cristalinamente, que tem o cu a ver, aqui, com as calças…
As relações humanas são complexas e, embora, pessoalmente, odeie mentir, seja em que situação for, pelo que não tenho história pessoal de comportamentos esconsos, nesta área, conheço muito boa gente (entre machos e fêmeas) que não tem idêntica capacidade de clarificar – perante outrém e perante si – certos episódios em que o terreno da afectividade e do desejo se torna inapelavelmente fluido, sem que tal os diminua noutros campos. Convém não confundir atitudes que advêm da fragilidade humana, mas que não implicam o desrespeito básico pelos outros, com outras em que o egoísmo e o desprezo pelo semelhante são um “modo de vida”.
O meu modo de pensar e agir não significou que, ao longo da vida, ferisse menos gente do que outros cuja conduta seja menos “directa” (e sem hipóteses de retorno, nem flexibilidades descabidas, já que a acção, por muito dura que tenha de ser, é precedida de reflexão adequada). Até por isso, há uma zona, onde, por certo, não entram violência e má-fé, em que não me reconheço o direito de julgar os outros.
Desde que estas coisas se passem entre pessoas adultas e responsáveis, sem violência física ou abuso de uma qualquer posição de supremacia ou poder sobre “o outro”, estas questões, para mim, são privadas, são privadas e são privadas. Ah! e – para quem ouça mal – também são PRIVAAAAADAS!
Aliás, se algumas ligações minhas, com pessoas com alguma notoriedade pública, acontecessem hoje – com o espaço mediático enxameado de coscuvilheiros profissionais -, suspeito que já teria remetido para os cuidados intensivos um montinho de jornaleiros (ou jornaleiras) róseo-metediços e, eventualmente, de “paparazzi”. É que sou um rapaz muito paciente, mas quando a estupidez agressiva ousa ensaiar um passinho que seja para cá das fronteiras dessa paciência, as minhas conhecidas simpatia e tolerância (não estou a gabar-me, pois não?) esfumam-se por completo e as consequências não costumam ser agradáveis para os atrevidos.
O comportamento de responsáveis políticos na sua vida privada só é passível de devassa se entra em conflito com as suas posições públicas, em particular em temas que interfiram com a liberdade individual e, sobretudo, se em nome de princípios religiosos ou outros de limitado uso. Os opositores da IVG e campeões do “sexo para procriar” serão escandalosa notícia se se afastarem da estrita fidelidade conjugal, da castidade fora do sacramento do matrimónio, ou se efectuarem suspeitas viagens a abençoados locais, onde lhes acontece o milagre da interrupção – involuntária, claro! – de uma gravidez inoportuna. Em tempos já recuados, a Diana Andringa explicou isto muito bem. Em nenhuma outra situação considero aceitáveis tais devassas, nem considerações abusivas sobre o comportamento de outras pessoas, por razões e em circunstâncias que, obviamente, desconhecemos. Assim sendo, parece-me mais útil restringir as avaliações éticas ao espaço público e, sobretudo, político. Onde não faltam, de certeza, razões éticas para a mais extrema indignação.
Paulo, desculpa de só responder ao teu comentário tanto tempo depois. Entretanto, hoje consegui lê-lo com atenção, e, por favor, deixa-me dizer-te o seguinte:
1) Não contestei ao Hollande nem a outra pessoa qualquer o direito a uma vida privada. Mas pessoalmente acho que faz falta ter carácter tanto na vida pública, como na privada. Quem não o tem numa delas, dificilmente o terá na outra. A minha experiência de vida, bastante longa já (com certeza que não foi a melhor), diz-me isso. Podes já crer que já o comprovei.
2) Um servidor público tem obrigações especiais. E quanto mais alto o cargo, maiores são elas. Garanto-te que não estou para aqui armado em moralista. Qualquer pessoa está sujeita a ter uma paixão, nas situações mais complicadas. Mas usar (abusar) da sua situação privilegiada para usar meios públicos, ou o ascendente que se tem sobre outros servidores, para satisfazer essa paixão, é muito mau. É próprio das tais classes que acham que são donas de tudo e de todos. E o Hollande falhou na matéria, pelo que dizem as notícias.
Nunca li o que a Diana Andringa escreveu sobre estas matérias. Se me puderes fazer chegar o texto, gostava muito.
Obrigado, Um abraço para ti.
João
Até hoje, o Hollande não assumiu (mesmo dando de barato algumas medidas avulsas) qualquer linha política coerentemente de esquerda e anti-sistema que me despertasse o mínimo de simpatia por ele. Não é, pois, disso que se trata.
As experiências e o modo como as “processamos” são diferentes.
A “minha” experiência diz-me que a “falta de carácter” não se mede pelo modo como as pessoas se comportam perante certos acontecimentos ligados, repito, a desejos e afectos: e não faço distinção, neste caso (nunca fiz), entre homens e mulheres, embora tenha vivido uma época – que, infelizmente, não está totalmente ultrapassada – de predominância de uma perspectiva fortemente machista na abordagem destas questões, algo de tão arreigado que me obrigou a “adaptar” as minhas ideias a uma realidade irrecusável, quando amigos meus, que geralmente não demonstravam falta de carácter na sua vida profissional e na sua intervenção político-social, agiam, na relação-homem mulher, com uma certa “flutuação” de comportamento, devido ao peso de hábitos socialmente aceites como “aceitáveis e normais”, de que não era fácil libertarem-se. P. e., rapaziada casada que vivia na crença ingénua de que as respectivas consortes – seres sagrados que, juntamente com os filhos, os prevaricadores “adoravam” – não suspeitavam das suas “infidelidades”, quando, na realidade, e também de acordo com antigas “normas sociais” ainda remanescentes, simplesmente, as toleravam, conscientes da “sacralidade” do reduto familiar, a cuja resistência, em muitos casos, assisti, contrariando a minha incredulidade.
Não sendo eu capaz desse comportamento sinuoso, o que afirmo é que, com frequência, não me senti no direito de os julgar (ainda que tentasse transmitir-lhes as minhas dívidas sobre a solidez das suas “convicções”), pois, se não tivesse construído – eventualmente por razões de personalidade muito próprias – um determinado tipo de posição, que se estendia a todas as áreas da minha vida, talvez não escapasse a um comportamento semelhante, dada a formação – familiar e social – que nos era comum, a mim e a eles.
A minha posição, no que se refere à invasão da vida privada, seja qual for a posição ou cargo que alguém ocupe, é radical e irredutível. Daí a referência às “calamidades” que se abateriam sobre quem ousasse intrometer-se na minha vida privada – como hoje acontece – apenas porque alguma vez tivesse sido “figura pública”, ou tivesse uma relação próxima com uma “figura pública” (e como – por razões ligadas à minha abordagem e vivência da resistência anti-fascista – tive acesso a um treino físico intenso, permanente e orientado, podes crer que não se trata de uma afirmação leviana).
A questão, aqui, é que experiência, vivências e análise da diversidade dos comportamentos humanos e das situações que podem ter de enfrentar, fazem com que não afaste a hipótese de o presidente francês se encontrar num daqueles momentos de indecisão e perplexidade afectivas a que não poucas vezes assisti e que não assumiria, pois, uma particular excepcionalidade. Condená-lo por isso seria varrer com idêntico apodo de “falta de carácter” uma quantidade de figuras históricas que, simplesmente e muito humanamente, cometeram o pecado de não serem deuses e de não serem, na sua vida, cópias exactas de quem os julga, não apenas de acordo com os seus valores próprios, mas também com a sua própria (e irrepetível) personalidade. E, sendo intransigente perante certo tipo de comportamentos e, até, ideias que se opõem a valores fundamentais (direitos humanos, p. e.), não gosto de deixar no esquecimento, porque seria irracional, a imensa diversidade que as quase infinitas combinações de milhares de milhões de genes produzem no conjunto da humanidade, entre os indivíduos que a constituem.
O Hollande pode ser um “ganda malandro”, mas não pelo episódio explorado por um pasquim sensacionalista e que só a indefinição de princípios e valores que assola os órgãos de comunicação social levou a ser repescado por “media” ditos “de referência”, uma espécie em rápida extinção.
Quanto ao que disse a Diana Andringa, há-de estar escrito em algum jornal da época mas, que me recorde, tratou-se de uma declaração oral, dando, essencialmente, um exemplo deste teor (que tem como referência um tema da época): se o deputado José Morgado (o tal que, no famoso poema de Natália Correia, ficou capado após ter gerado o único filho), que se opunha tão energicamente à despenalização da IVG, fosse apanhado em situação “privada” contraditória com o que, com tanta fogosidade e unção, defendia, o assunto era público e a contradição hipócrita seria, justificadamente, notícia; qualquer outra situação, que não implicasse contradição entre o que se defendia publicamente e o que se praticava em privado, NÃO ERA NOTÍCIA. E isto tanto podia acontecer nestes domínios talâmicos, como no dos negócios ou quaisquer outros em que a contradição irrompesse na dicotomia entre o que se defendia PARA TODA A SOCIEDADE e o que se praticava. Mas disso, já António Vieira, três séculos antes, falava, no “Sermão da Sexagésima”…