“A DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO NÃO O ENCORAJA. DESENCORAJA, SIM, OS MALEFÍCIOS DO ABORTO”- NATÁLIA CORREIA NA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA por clara castilho

9349741_b7nUl

Natália Correia (1923–1993), autora de uma obra extensa e variada, que vai desde a poesia, ficção, teatro, ao ensaio, tendo tido cargos de responsabilidade no meio jornalístico.

No que se refere ao assunto de que temos vindo a falar, ficou mais conhecido o seu poema que recitou em 1982, na Assembleia da República ao deputado do CDS, João Morgado, adversário do projecto-lei da Interrupção Voluntária da Gravidez e pai de um único filho, que defendeu que “o acto sexual é para fazer filhos”. Ali mesmo Natália Correia escreveu o poema ‘Truca-truca’ ou ‘Ficou capado o Morgado’. Está amplamente divulgada na internet.

natlia correiaQuadro de Paula Rego

Mas as suas intervenções relacionadas com este assunto foram muito mais importantes do que pícaro episódio. Por não ter conseguido ter acesso às actas das sessões, recorri ao artigo “A discussão do aborto na voz de Natália Correia de Fernando Rebelo (http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5190.pdf).

E dele retirei algumas frases do seu discurso:

“Nesse combate que se travou na minha consciência tomou forma a ideia de respeitar a opção daqueles que por imperativo de concepções e de fé religiosas interpretam o direito à vida em termos de o incompatibilizarem com a impunibilidade do aborto. […]  A estes direi, como Pascal, que toda a filosofia não vale uma hora de dor.

“Digo-o pensando nesses muitos milhares de mulheres que, dolorosamente impelidas por circunstâncias inibitórias de uma maternidade saudável, arriscam a vida em tenebrosos desvãos de curiosas. Sangue e tragédia com que a efectiva não coactividade e não funcionalidade real da penalização legal do aborto tece a rede da sua prática clandestina! Nas reflexões que trabalharam a minha decisão forçosamente me debrucei sobre o campo científico a fim de obter uma resposta para esta pergunta: em que momento começa a existir a vida humana desde que o homem é uma maravilhosa descontinuidade no contínuo biológico que é a vida?

Do famoso biólogo Jean Rostand colhi este depoimento: “Se desejamos ser consequentes na resposta a esta questão, será preferível proteger por todos os meios a mulher portadora de óvulos férteis e o homem portador de espermatozoides”.

Outro parecer, este do fisiologista François Jacob, adiantou-me que não existem entre o ovo e o recém-nascido que dele surgirá um momento privilegiado nem etapas decisivas que confiram, de repente, dignidade humana ao feto. Simultaneamente, Jacques Monod – que com François Jacob compartilhou o prémio Nobel da Medicina e Fisiologia , em 1965, – recusa a identificação do aborto com o infanticídio, declarando:

O feto não é uma pessoa humana. Ele não tem consciência. Confundem-se, há muito tempo, uma certa mística e os dados biológicos”.

Muito embora eu não pertença ao número daqueles que fazem da ciência um dogma, obrigatoriamente associo as opiniões destas sumidades científicas com a lógica desta verosimilhança. Só com o nascimento se adquire personalidade jurídica.

[…] Firmemente tomo a direcção de atribuir maior valor aos direitos dos que geram a vida que humanamente se manifesta na fruição da consciência e da personalidade. Isto porque para mim respeitá-la é, em primeiro lugar, combater a fome, a alienação, os massacres, as guerras e a institucionalização do pesadelo nuclear que ameaça ceifar milhões de vida.

[..] E não me escuso a dizer que os que não são capazes de mudar uma sociedade em que a asfixia económica é, quantas vezes, cauda do recurso infortunado ao aborto, não têm qualquer espécie de autoridade para legalmente o penalizarem.

[…] A despenalização do aborto não o encoraja. Desencoraja, sim, os malefícios do aborto legal.

Tudo isto se passou em 1982. Natália não obedeceu à indicação de voto do seu partido. Tomou a sua decisão em liberdade, de acordo com a sua consciência. Coisa que não está a acontecer agora, com a votação no Parlamento a favor da realização de um referendo sobre co-adopção por casais do mesmo sexo,graças aos votos favoráveis de toda a bancada do PSD, sujeita à disciplina de voto, e à abstenção dos deputados do CDS-PP, que votaram todos de acordo com a orientação da direção do partido. E isto apesar de vários deputados optaram por apresentar declarações de voto que serviram para demonstrar as suas verdadeiras posições sobre a matéria. Mas a decisão passou, em termos que violam a constitucionalidade e as mais recentes recomendações europeias.

 

1 Comment

Leave a Reply