Novas Viagens na Minha Terra – Série II – Capítulo 175 – por Manuela Degerine

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Marcel Proust ao pequeno almoço

A Credencial – obrigatório passaporte – é datada e carimbada em cada albergue, por conseguinte atesta a passagem pelas sucessivas etapas do Caminho; é com este documento que requeremos a Compostela. Para além de Santiago, mantemos a primeira credencial se restar espaço para os carimbos, como nas que serviram a partir do Porto, as quais nem metade preencheram, mas podemos, se quisermos, obter outra do Caminho de Finisterra. Nasci no país das certidões, dos atestados, dos comprovativos sem os quais nada feito, que tornam aliás a sociedade portuguesa tão pouco produtiva, como todos verificamos, porém aqui gosto dos rituais santiagueiros (tanto recentes como seculares), portanto levo doravante duas credenciais.

A segunda etapa é de trinta e quatro quilómetros e sinto-me incapaz de a percorrer a pé com uma mochila… Quem aliás se sentirá em forma? Joseph entreteve a insónia na conversa com a columbiana pois, muito pior, mais sonoro e agressivo, na cama ao lado da minha jazia a dinamarquesa, que acende um cigarro no outro – felizmente lá fora – e portanto agravou uma bronquite cavernosa, problema só dela, poderá parecer, não tanto assim pois, em vez de tossir como a maioria das pessoas, a criatura passou a noite aos berros. Para além do cheiro a tabaco. Para além do risco de contágio. Consequência dos urros de uma e da tagarelice dos outros: neste albergue ninguém dormiu. A noite pareceu-nos muito longa…

Vou – em estado comatoso – mascando os flocos de aveia enquanto à minha frente Carlo molha bolachas no café… Um gesto que de súbito me acorda.

– Ah, os italianos também molham?

– Os franceses não?…

– Os franceses sim, os portugueses não.

Concordamos que um mapa indicando quem – na Europa – molha os sólidos nos líquidos seria útil, evitar-nos-ia quando viajamos gestos ou reações deslocados, embora após a publicação de “À la recherche du temps perdu” molhar se tornasse acima de tudo um rito literário: Marcel, a tia Léonie, a madalena, Cambray que sai da chávena de chá… Carlo oferece-me uma bolacha, que com sem a molhar, sinto-me nisto mais lusa do que gaulesa, embora não possa em absoluto garanti-lo. “Tremper son biscuit” (“molhar o biscoito”) também significa ter relações sexuais e talvez por isso o gesto se tenha tornado para mim obsceno.

Levantam-se os portugas. Alcançam a máquina do café com os olhos fechados. E um geme:

– Ai, Jesus!

Andam à volta dos trinta, trinta e cinco anos, um mais franganote, os outros – entre banha e músculo – grandes matulões, devem praticar desporto, para além da caminhada; a sua preparação não me inspira cuidados.

O coreano deitou-se ontem por volta das cinco mas agora permanece de facto deitado. (Encho a mochila às escuras, o que aliás nada me incomoda.)

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