CONTOS & CRÓNICAS – O Guarda da Casa de Deus (1) – por António Sales

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        Há vidas em que o destino se vinga como se procurasse descarregar nelas as frustrações do mundo. A existência do Hermínio Marrafa é disso um verdadeiro exemplo: uma existência anónima, confinada aos esquemas sociais da aldeia de Serra Fria, batida à beira da campa de uma maneira grotesca.

         Liberal por tradição de família e pendor de natureza, Marrafa herdou o carácter violento do avô que lhe deu a palavra afoita e o gesto destemido, valendo-lhe estas qualidades a cadeia por mais de uma vez. Embora inculto, embora rude, só tinha uma cara e uma vergonha. Sabia por instinto que o seu lugar era contra a ganância e o medo.

         Baptizou o corpo atarracado e largo nos cabos nodosos das enxadas, o carácter no desespero das fomes invernais e a astúcia no contrabando ao escassear da lavoura. Nos perigos da candonga fez uns dinheiros que permitiram comprar a territa da sua independência e escapar daquela vida de morte refugiada ma boca das noites. A vida deste homem dava-se mais entre o trigo do que nas malhas da Guarda Fiscal.

         Em Serra Fria o respeito por Hermínio Marrafa era um facto. Não porque fosse culto, ou rico, ou dono e senhor da verdade, pois a esta sabia-a encontrar nos interesses colectivos segundo uma filosofia chã que não se aprende nos bancos da escola mas sim pela experiência da vida.

         Neste homem, de rosto escuro gravado a cinzel, era notória uma sensibilidade afectiva apesar do seu carácter obstinado e violento. Vivia só numa pequena casa de pedra sobreposta levantada aos fundos da fazenda. A solidão era a companheira que reflectia a alma das coisas e ajudava-o a com prender a natureza dos actos humanos.

         O tempo é um amigo mas também inimigo. Ele marca as pessoas transformando a sua visão do mundo. Envelhece-nos, amolece-nos ou endurece-nos conforme a tragédia interior de cada um. Nem sempre, no entanto, a velhice é a imagem representativa do passado. pelo contrário, de um modo geral a ideia é enganosa.

         Quem visse o Marrafa aos sessenta e oito anos jamais adivinharia a imagem interior de um homem sensível, embora a seu modo duro na defesa do direito e da justiça e intransigente nas questões de princípio.

         A religião, por exemplo, foi sempre para ele uma questão de princípio. Uma questão básica, note-se, pois este pormenor é deveras importante. Em política dava às vezes um jeito em aceitar certas coisas mesmo quando não lhe iam a contento, mas em matéria de padres e de igrejas mantinha opiniões absolutas.

         Exactamente neste ponto da narrativa torna-se indispensável uma explicação: Serra Fria não tinha padre nem igreja. Ninguém se recordava de ter visto imagem de santo em procissão embora existissem devotos como, aliás, em todo o lado. Os aldeãos trabalhavam de sol a sol e não lhes sobrava nem o tempo nem o dinheiro para leviandades. Escasseavam os pecados que impõem penitências e o recurso ao Divino ficava à mão de semear quando alguém se lembrava de o invocar em orações domésticas. Só para três acontecimentos o padre era chamado: casamento, baptizado e morte.

         Um dia, porém, as coisas mudaram. Foi a Rita Mamona que trouxe do mercado a novidade. O padre Januário iria começar um peditório por todas as terras do concelho para que a aldeia tivesse a sua igreja. Desta forma, aparentemente inofensiva, começou a declaração de guerra.

         O primeiro grito partiu do Marrafa que tratou de agitar na taberna a opinião pública e atrair para o seu campo quantos estavam dispostos a defender a liberdade. O Marrafa considerava a existência física do edifício o primeiro passo no caminho da destruição da tranquilidade do povo..  Com o campanário trocavam a paz pelas manhas da sacristia, conforme gostava de designar a actividade eclesiástica. Persistentemente, deu-se à tarefa de barrar o caminho à corporização da palavra de Deus.

         Primeiro por palavras e depois por actos o padre pôs a peito levar a sua avante nem que para isso fosse obrigado a lançar o anátema sobre gentes indefesas e ignorantes. Narrafa não concedeu tréguas através de uma campanha que lhe atirava a alma para as penitências do inferno. Mobilizou quem pôde e quanto pôde extremando os campos e mantendo intransigentes as vontades.

         Contrariando os mandamentos da santa madre igreja, Januário informou a Câmara do que se estava a passar e esta agiu de acordo com a tradição e o hábito mas a aldeia reagiu, segundo os costumes herdados por gerações, em não confundir respeito com cobardia.

         Deste modo criou-se uma situação de imprevisíveis consequências. A aldeia negava-se à casa de Cristo, a Câmara, por uma questão de prestígio, obstinava-se em abrir caminho à edificação mesmo recorrendo à ameaça dos canos das espingardas da lei e da ordem. Todavia, a solução violenta repugnava ao padre pois não seria muito curial ligar a GNR à palavra do Senhor.

         (conclusão na próxima semana)

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