Concluímos ontem a publicação de Pensar Diferente, Impactos Humanitários Da Crise Económica Na Europa – Um Relatório Da Cruz Vermelha Internacional E Do Crescente Vermelho (Excertos), uma montagem de Júlio Marques Mota a partir do relatório original. Hoje começamos a publicar um texto, também de Júlio Marques Mota, de introdução àquele trabalho, e que deveria ter sido publicado anteriormente, o que não aconteceu na altura devida por lapso nosso. Apresentamos-lo agora, pedindo desculpas a Júlio Marques Mota e aos leitores, pelo lapso ocorrido. Mas os leitores poderão verificar que não perde cabimento lê-lo após o texto principal. E continuamos assim a série Falemos de Economia, falemos então de Política, do maior interesse nos tempos que correm, em Portugal e no Mundo.
Introdução ao texto da IFRC (Federação Internacional das associações da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho)
Júlio Marques Mota
Parte I
O quarto artigo da Série Falemos de Economia, falemos então de Política, é um texto extenso, muito extenso mesmo e trata-se de excertos apenas. De excertos longos, é certo, mas de excertos. Um olhar de ternura e fraternidade sobre toda esta Europa em crise, neste caso, o olhar de milhares e milhares de voluntários a trabalhar para a Cruz Vermelha, voluntários que procuram ajudar os mais atingidos pela crise mas com o drama de que estes são muitos, muitos milhões mesmo. O olhar da Cruz Vermelha internacional sobre a Europa em crise. Um relatório que aqui em Portugal mal se ouviu falar. Boicote? Ignorância da nossa imprensa? Incapacidade dos nossos jornalistas estagiários, a menos de 800 euros mensais talvez, em pegarem num texto com esta profundidade? Pressão do poder instituído? Não sei, sei apenas que é um texto que todos nós devemos ler e nele meditar, um texto que é simultaneamente um apelo. Um apelo a que se pense diferente, a que se reaja diferentemente se quisermos sair da crise . Um texto que é simultaneamente uma crítica a tudo o que se tem feito, a convidar-nos a uma profunda reflexão a partir dos factos e das histórias pessoais aqui relatadas.
Um texto a publicar por partes e no fundo por temas, a Introdução em primeiro lugar, e depois por capítulos, pela “descrição” das grandes Tendências que se desenham na Europa e adicionalmente por dois capítulos mais :
- Primeira Grande Tendência- A pobreza está a aumentar, e os pobres estão a ficar ainda mais pobres.
- Segunda Grande Tendência- Os novos pobres na Europa
- Terceira Grande Tendência- Enfraquecimento na saúde – os cortes podem vir a saírem bem caros.
- Quarta Grande Tendência- O desemprego: dignidade e desespero.
- Aprender a lidar com a Crise
- Propostas da Cruz Vermelha Internacional .
Ainda o trabalho de tradução dos textos escolhidos não estava concluído, eis que telefona um grande amigo meu. Precisava de falar comigo. Tudo bem, combinei uma hora e esperei.
Trata-se de alguém que a roleta da crise atirou por terra, como aconteceu a tantos outros de que se fala neste relatório. Jovem na casa dos 30 anos, em tempos, há 4 anos ainda, tinha uma vida farta. Comerciante, gerente de duas empresas que facturavam bem, era um homem que “fardava” e bem a grande burguesia da cidade onde cresceu. As grandes marcas internacionais, de homem e senhora passavam-lhe pelos dedos, pelos olhos, pelas idas a exposições e a escolher o seu mapa de vendas. A crise chegou e com uma loja em regime de franchising num dos grandes centros comerciais, tipo Colombo, centros que o capitalismo internacional arranjou para dar cabo do pequeno comércio e depois de o explorar até ao tutano, cuja administração estará no Luxemburgo, em Madrid ou em Amsterdão, com rendas de casa leoninas, negociadas caso a caso e de garantia bancária assegurada por 5 anos, este meu amigo sentiu a crise, sentiu que tinha que rapidamente se desfazer da loja, dos direitos e sobretudo das obrigações que esta acarretava. Inteligente, sentiu nas narinas os ventos terríveis da crise. Passou a firma à multinacional que o fornecia, pois estava em regime de franchising. Acordo? Bom, deixem-me explicar : a multinacional que o fornecia fica-lhe com toda a existência, de resto bancariamente já paga ou de pagamento garantido. A que preço, a preço de custo, certamente. Quando ele me contou este acordo deixei escapar um sorriso amargo. E disparei: quer isso dizer que se uma camisa custa ao cliente 110 euros mais IVA quer isso dizer que ela te custou 60 euros à entrada da loja. Certo? Certo, respondeu-me. Mas quer isto dizer que a camisa saiu de outro lado, saiu do produtor, que neste caso é agora o comprador. Estás a seguir? Estou, estou, respondeu. Então o preço a pagar pelo actual comprador é o custo que lhe saiu enquanto produtor e esse será, por exemplo 40 euros, uma redução de 33 1/3 %. É mais ou menos isto, mas porque é que acha que necessariamente tinha que ser assim, pergunta-me com ar espantado. As narinas dilatavam-se-lhe a fazer-.me lembrar o meu cão perdigueiro, de nome foguete, felino que nem o diabo quando sentia a caça. Simples, pela teoria do valor. As mercadorias não têm um valor como essência, dito valor trabalho, têm um valor do mercado, um valor de venda estabelecido na circulação, na venda, mas é um valor do mercado a que se situam os operadores. Ora, neste caso um situa-se na esfera da produção, a multinacional, e o outro na esfera da circulação ou da venda a retalho, o meu amigo. Assimetria de operadores, impõe-se a lei do mais forte. Se fosses vender a existência a empresário de venda a retalho venderias ao teu preço de custo, mercado em que tu e o teu comprador se situam. Mas neste caso, azar, estás a vender as peças de roupa a quem as produz. Porque é que ele te iria dar 60 euros se as pode produzir a 40? És capaz de me dizer? E assim perdeste por cada camisa já paga 20 euros, dados assim de bandeja à multinacional. Mas há mais acrescenta-me ele. Mais, o quê, questiono eu. Olhe, nas existências com mais de um ano e menos de 2 anos de presença na loja a regra era a mesma mas depois de ter sido deduzido a margem de trinta e três por cento, um desconto de saldo . Exemplo, a mesma camisa se com mais de um ano e menos de 2 anos, seria primeiramente avaliada a 60 euros menos 33 por cento deste valor, ou seja avaliada a 40 euros. Achado este valor haveria agora a redução do produtor que por hipótese é de um terço e a camisa seria agora paga ao meu amigo por 40 – 40. (1/3), ou seja aproximadamente 27 euros! E já agora, as mercadorias com mais de dois anos? Que preço te foi imposto? Aí passei-me, uma vez que a resposta foi sibilina: não valeram nada. Entregues pura e simplesmente ao comprador da loja. Nem podia ficar com elas! Bom, no meu tempo de adolescente quando se ia às putas dizia-se que íamos ser esfolados como um cabrito. Não há dúvida, foste esfolado que nem um bode, meu Deus. E assim este meu amigo durante 4 a 5 anos esteve a fazer a casa para a multinacional ficar com ela, praticamente oferecida de bandeja, de borla. Um detalhe mais: a loja estava mobilada pela multinacional mas bem facturada a mobília para ser paga com o suor de português. Ninguém a este nível oferece seja o que for e seja a quem for. E com a mobília como foi? Eles não produzem mobília e então como foi? Aqui o meu amigo gaguejou. Bem, sabe, tinha quatro anos, quatro anos de amortizações, estava pois amortizado em 80 % do seu valor de factura, o valor que a multinacional me facturou. Então pagaram-me apenas o valor da instalação menos os 80 % desse valor como amortização, como quebra do valor comercial. Dei um salto da cadeira quando me contou, em tempos, esta história. Depois, foi a segunda loja, a mais importante, a fechar. Loja que eles tinham comprado e não arrendado, loja que estava garantida ao banco com uma hipoteca. Naturalmente assim, pois a aquisição do espaço tinha sido muito cara, dado que o sítio era muito bom e o espaço muito grande. O ciclo é pouco mais ou menos equivalente com algumas nuances. Mudam de local, para uma loja de renda mais barata: 3000 euros. Esperam alugar a loja grande que largaram para mudar para esta mais pequena. A loja grande tinha sido comprada com crédito bancário. Apostaram na venda deste activo e pagariam depois à banca, a ficar ainda com uns bons milhares. Mas o Diabo tinha entrado na vida dele e ele tinha sido lançado na espiral recessiva para a exclusão. Vendida em Maio, o seu comprador fica, por contrato, a pagar aluguer durante 6 meses até arranjar crédito bancário e pagar a casa. Destes seis meses a comerciante compradora da casa só pagou um mês e ao fim de seis meses entregou-lhe a casa. Sem lhe dar um cêntimo mais, sequer. Também tinha falido, porque não tinha arranjado crédito. A contracção do crédito, crunch, típico das crises tinha-lhes estoirado com o negócio. Depois tentaram vender a casa para uma clínica mas já não houve tempo, as mensalidades da hipoteca deixaram de ser pagas e o banco ficou com tudo o que restava.
E na crise, já completamente falidos , ele e a mulher, por causa das garantias recíprocas dadas aos bancos, largam a casa muito boa que tinham e alugam uma antiga para eles e para os filhos. Numa noite de vazio brutal e com a vida afectiva já a rebentar pelas costuras, com a mulher também ela cansada de perder uma vida de mulher da burguesia local para andar a distribuir mercearias pelas pequenas lojas deste seu distrito a seiscentos euros por mês e com horário das 9 as 19 horas com uma hora para almoço e carro completamente controlado, numa noite de desolação os corpos falaram mais alto, a linguagem que está para lá de todas as crises, às vezes até mesmo das afectivas, e desse encontro, desse apelo à vida e à reprodução, nasceu nove meses depois uma menina muito bonita, o segundo filho, portanto. Casal a romper-se, casal que a seguir se coseu e mais um ano assim permaneceu. Mas a crise não passou.
Diremos antes que a crise aperta, a espiral torna-se mais comprida e menos larga, tornando a velocidade da queda ainda maior. O processo de falência é concluído, os bens entregues a um gestor de massa falida e a casa alugada até aí alugada a médicos a fazerem a especialidade fica na posse deste gestor. Os estudantes de medicina, já médicos, desaparecem e o dinheiro que ao meu amigo e mulher tanto jeito lhes fazia, desaparece igualmente. Financeiramente a situação torna-se insuportável. Precisa de saltar, de agarrar a vida num outro lado, onde pensa que a pode apanhar. E foi-se embora.
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