PELO DIREITO À UNIDADE EUROPEIA, PELO DIREITO A UM IALTA II OU DA DESESPERANÇA DE HOJE AO DIREITO À ESPERANÇA, AMANHÃ – CRIMEIA: PUTIN AGITA O GRANDE TABULEIRO DE XADREZ EUROPEU

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

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8. Crimeia: Putin agita o grande tabuleiro de xadrez europeu-  a ideia de fronteira volta a estar presente sobre o velho continente

 Daoud Boughezala

Revista Le Causeur

16 de Março de 2014

A união da Crimeia à Rússia, ratificada pelo referendo de ontem é a primeira perturbação transfronteiriça de envergadura que intervém na Europa desde o fim das guerras da guerra do Kosovo em 1999 e da independência desta antiga província da Jugoslávia, seguidamente da Sérvia, votada a 17 de Fevereiro de 2008 pelo Parlamento Kosovar. Em Agosto de 2008, a operação relâmpago efectuada pela Rússia para “vir em socorro” dos territórios “independentes” da Abakhasia e a Ossécia do Sul já tinham soado   como uma vingança, perfeitamente organizada por Moscovo graças à imprudência do presidente georgiano Mikhaïl Saakachvili, em Agosto de 2008.  A união da Crimeia à Rússia parece inscrever-se plenamente nesta cronologia da luta efectuada desde o início do século  XXI sobre os caminhos  do antigo império soviético entre uma Rússia ávida de restaurar o seu “glacis defensivo” e um Ocidente preocupado em o eliminar.

Editorialistas e jornalistas têm  abundantemente glosado sobre “o regresso da guerra fria” por ocasião da operação que a  Rússia efectuava na Crimeia. A questão  que conviria levantar seria antes a de se procurar saber se a guerra fria realmente alguma vez tinha cessado,   tanto do lado russo como do lado americano. O mapa dos conflitos desencadeados desde o desaparecimento da URSS mostra incontestavelmente uma Rússia primeiro impotente a conter o refluxo da sua influência e um tanto apertada  pelas intervenções efectuadas sob a égide dos Estados Unidos – no Iraque, seguidamente no Afeganistão, com a instalação de bases americanas no Uzbequistão, depois, numa segunda fase, capaz de novo de restaurar progressivamente esta influência e de diminuir a pressão exercida sobre ela por uma série “de golpes” diplomáticos e militares. As guerras da Tchechénia  em 1996, seguidamente em 1999-2000, a aproximação com a China, as operações de intimidação no que diz respeito aos Estados bálticos (o cyber-ataque efectuado contra a Estónia em 2007), a guerra relâmpago  contra a Geórgia em 2008 e o papel desempenhado no conflito sírio, tão posto em descrédito  pela opinião  pública ocidental, aparecia como  outras tantas respostas às iniciativas ocidentais: a influência americana sobre a revolução cor-de-laranja na  Ucrânia em 2004, a instalação tão  controversa do escudo antimíssil americano na  Europa ou a intervenção em Líbia em 2011. A anexação da Crimeia, efectuada com um “knowhow” muito soviético, inscreve-se plenamente nesta confrontação. Do seu lado, os Estados Unidos nunca deixaram de considerar a Rússia como uma ameaça potencial apenas que para ele seria conveniente  dominar, se não mesmo de  neutralizar o mais eficazmente possível.

De maneira interessante, a estratégia e a visão do mundo dos Estados Unidos ainda hoje  é resumida pelos escritos de Zbigniew Brzezinski, em especial o capítulo intitulado “um géostratégie pour l’ Eurasie”, extraída da sua obra Le Grand échiquier. Brzezinski tem uma  certa tendência a aplicar às relações internacionais uma visão muito global que esquematiza um tanto a confrontação entre vários blocos civilizacionais. Brzezinski, antigo conselheiro para os negócios estrangeiros e a segurança nacional de Jimmy Carter, considera que os Estados Unidos devem continuar a impor-se como a nação que tem como missão fazer prevalecer os direitos do homem contra as ambições imperiais, nomeadamente da Rússia. Nesta óptica, se os Estados Unidos quiserem continuar a assegurar a estabilidade do mundo, devem favorecer a unidade europeia bem como a orientação pro-europeia “da Rússia post-imperial”. “Toda a expansão da influência europeia corresponde automaticamente a uma extensão da influência americana”, escreve  Brzezinski. Isto passa também, considera, por pôr em prática e o mais depressa possível, uma vasta zona de comércio livre transatlântica. A partir de 1997, o geostratega previa: “daqui até 1999, os três primeiros países da Europa central membros da UE terão integrado a OTAN (…) daqui até 2003, a União Europeia terá começado as negociações de integração das três repúblicas bálticas, ainda antes de que a NATO encare igualmente a sua integração, da mesma maneira que a da Roménia e a Bulgária, daqui até 2005; entre 2005 e 2010, a Ucrânia, admitindo que procedeu às reformas necessárias e que seja reconhecida como um país da Europa central, deverá iniciar negociações preliminares com a União Europeia e a NATO”

A influência de Brzezinski sobre a administração americana é hoje objecto de debates. John Kerry ainda lhe dá mesmo  muito crédito e sua impressionante carreira permite-lhe ser ouvido  tanto pelo Partido republicano como pelo democrata.  Em qualquer caso, as suas recomendações parecem ter sido amplamente seguidas  no que se refere à  Rússia. Há uma década atrás, Brzezinski recomendava  diluir o mais possível a Rússia desestabilizando  as margens do antigo Império. Uma  Confederação russa de elos muito fracos,  escreveu, – consistindo numa Rússia Europeia, numa República da Sibéria e na República do Extremo Oriental – poderia mais facilmente cultivar relações económicas com os seus vizinhos. Cada uma das entidades confederadas seria capaz de explorar o seu potencial criativo, confiscado durante séculos pelo poder burocrático de Moscou. Além disso, uma Rússia descentralizada seria menos propensa a mobilização Imperial.”

Longe de enfraquecer o seu poder, Putin recordou com a Crimeia uma ideia esquecida na Europa: as fronteiras. O que Putin tem sem dúvida bem compreendido e destacado de resto na  Criméia, , é que agora é  possível impor os seus interesses estratégicos, desafiando os Estados Unidos, enquanto a Europa poderia ser entendida pelo que ela é: uma grande guilda de mercadores sem outro poder que não seja o do  dinheiro, que é ao mesmo tempo enorme e reduzido a nada, desde que a desprezem. E isto é o que Vladimir Putin fez, para desgosto de Angela Merkel, que achava que  se podia apoiar sobre o  projecto de gasoduto russo-alemão e nos interesses económicos para trazer para a razão o poderoso  vizinho russo. No entanto, Putin desprezou  a Europa considerando as suas  ofertas, da mesma forma que as suas ameaças, como uma moeda sem valor, falsa.  Ele deliberadamente decidiu não conceder nenhum  crédito às nações cujos líderes defendendo os direitos dos humano com a mão sobre o coração, cancelam  alguns vistos para diplomatas, mas não dispensam passar sem  o dinheiro dos  seus oligarcas. Ele ignorou ostensivamente uma eurocracia cuja estupidez e ganância quase que torna elegante  a burocracia de Moscou.

. É difícil saber até onde irão as ambições de Vladimir Putin. É pouco provável que vão muito mais longe, por agora.  Uma Ucrânia mergulhada na guerra civil seria igualmente uma catástrofe para a Rússia e, a todos os que ousaram uma comparação bastante ousada com Anschluss alemã, recordar-se-á  que nos encontramos na era  atómica e que a Rússia não representa hoje mais do que 5% das despesas militares mundiais, o que deixa muito  pouca margem  para jogar aos conquistadores muito para além das suas fronteiras. A crise da Crimeia e a sua resolução  revelam sobretudo a deliquescência consentida da Europa muito mais do que as ambições desmedidas da Rússia. Desde o ano passado, e pela primeira vez da sua história, a Europa encontra-se no terceiro lugar em termos de despesas militares, arás os Estados Unidos… e da Ásia. Mais do que nunca, a UE é um império sem ser uma  potência que não sabe onde estão as suas fronteiras, uma supernação  que ignora o que é a sua história e não tem nehuns sinais sobre o que esta será no futuro, um gigante mudo ou, pior ainda, apenas uma irrisória cacofonia. A recente crise da Crimeia dará consciência à Europa que a sua própria  história, as suas fronteiras e a sua identidade não se definem somente pelas regras do mercado único? Ou será necessário que esta se resigne a escrever de novo um dia, como o fez um dia  Georges Bernanos: “Regressamos à guerra assim como à casa da nossa juventude. Mas já não há  lugar para nós” ?

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