CONTOS & CRÓNICAS -«O cinematographo» – por António Sales

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O Grémio Artístico Comercial repunhaem cena O Lucas e o 39 daOitava enquanto os irmãos Lumière apresentavam pela primeira vez, no dia 28 de Dezembro de 1895, o seu “cinematógrapho”. D. Maria Emília Silveira Calheiros, «virtuosíssima senhora residente em Torres Vedras», desconhecia totalmente o acontecimento e mesmo que dele tivesse notícia não levantaria um dedo para ir com o marido ao número 14 do Boulevard des Capucines por uma dessas modernices dos novos tempos. Estavam em Paris, sim senhor, mas para consultar o professor Louis Pasteur pois a senhora fora vítima da mordedura de «um cão hydrophobo», felizmente sem consequências como o mestre diagnosticou.

Jamais Auguste e Louis poderiam supor até onde o seu invento iria interferir no comportamento da sociedade. Aliás, nem acreditavam sequer na sua perpetuação como se concluí pela resposta a Georges Méliès, prestidigitador a dirigir o Teatro Houdin, quando este propôs a compra do aparelho por observar desde logo a sua importância comercial: «O nosso invento não está à venda – responderam os Lumière – Ele pode ser explorado durante algum tempo como uma curiosidade científica mas não tem qualquer futuro comercial. Para si seria uma ruína».[1]

 A primeira noite reuniu pouco mais de trinta pessoas. Em breve, porém, o elegante passeio parisiense enchia-se de uma população curiosa para ver a série de pequenos filmes onde se destacavam Chegada de um Comboio à Estação e L’Arroseur Arrosé, primeiro ensaio cómico de cinema apresentado ao público em Janeiro de 1896. A evidência do sucesso era inquestionável embora o pai dos inventores insistisse na dúvida ao contratar Félix Mesguich para operador cinematográfico, advertindo-o da instabilidade futura daquele «trabalho de feirante» que podia «durar seis meses, um ano, talvez mais, talvez menos». No ano seguinte, em Nova Iorque, Mesguich acabaria por ser levado em triunfo sob os acordes da Marselhesa após apresentar a novidade.

Apesar das polémicas de patentes entre os Lumière e outros que se consideravam legítimos inventores, tornou-se indiscutível que cabia aos dois franceses o mérito de terem conseguido a síntese das experiências precedentes projectando imagens sobre um grande ecrã. Foi este o segredo dos Lumière que, todavia, privilegiaram a investigação industrial em desfavor das vertentes comercial e artística que Meliès compreendeu a ponto de vir a realizar os primeiros filmes fantásticos Vinte Mil Léguas Submarinas e Viagem à Lua. O êxito foi de tal ordem que a 14 de Agosto de 1896, «vindo do Teatro Alhambra de Londres», conforme informava o Diário de Notícias, estreava-se o animatógrafo no Teatro D. Amélia. Nesse mesmo ano Aurélio da Paz dos Reis filmava no Porto a Saída dos Operários da Camisaria Confiança tornando-se o primeiro realizador português com os documentários Jogo do Pau e Chegada de um Americano à Foz do Douro.

Nos dois semanários publicados em Torres Vedras no final do século XIX o silêncio sobre o novo invento era absoluto. Paris estava longe pelo que qualquer notícia que dali viesse não tinha repercussões nas Linhas de Torres e os Lumière não eram propriamente Napoleão Bonaparte. Se Lisboa se entretinha para os lados do Chiado a divertir-se com a “engenhoca” por aqui tratava-se da saúde ao carrascão, ouvia-se a banda no coreto, faziam-se marchas aux fulambaux [2] e quadros de Folies Bergères.[3] Referências não há, notícias não se encontram e crónicas nem pensar. Não obstante, os amigos que terminavam as tardes na Havaneza entre refrescos e pastéis de feijão para conversas da terra e da política do reino não andavam distraídos da novidade embora mostrassem um certo cepticismo sobretudo num momento em que João Ferreira Guimarães e Souza Aguiar (autor de textos para amadores locais) preparavam com entusiasmo o próximo espectáculo para o Grémio Artístico Comercial. Firme na sua opinião perante a experiência colhida no Real Coliseu da Rua da Palma, Pozzal proclamava com um copo de limonada na mão: «Não es una maravilha pero es um espanto! O movimento das pessoas, dos objectos, de los coches, deixa-nos pasmados meus senhores. Creia-me D. António, os operários saem da fábrica e caminham direito a nosotros, el tren avança e temos a sensação que nos vai esmagar. Ficamos sem respiração agarrados às cadeiras. Cada película es una sorpresa. El cinematógrafo es mais do que a vida porque atira-nos para dentro da vida». Roliço, a lisa cabeleira negra assente à custa de brilhantina, o fotógrafo agitava-se na expressão apaixonada com que falava da «nova linguagem visual» cujo o fascínio ali ninguém negava mas punha objecções ao seu futuro como espectáculo, sobretudo o Souza Aguiar que, categórico, sublinhava: «É mudo, Pozzal, é mudo! Jamais conseguirá superar o teatro como para aí se diz». «Sí, sí, hoy es mudo pero un dia hablará!». Como? hablará como? – interrogaram-se os circunstantes. «Como no lo sé, pero sé que hablará.» – concluiu Pozzal convicto do milagre.

No Entrudo de 1901 o animatógrafo surge na vila integrado nos festejos que o Grémio Artístico Comercial promoveu. Designado «Animatógrapho Edison» ali ter-se-á mantido até 1904. Na Feira de S. Pedro o Theatro Pairet, espécie de teatro circo que a par de fantoches dava «sessões de gramophone e scenas de alta magia», apresentava-se «ao estimadíssimo público desta vila» proporcionando aos genuínos saloios que visitavam a feira espectáculos de “cinematógrapho”. Teve sucesso o Theatro Pairetjá que decidiu prolongar a temporada voltando a assentar arraiais logo no Abril seguinte, na Porta da Várzea, com uma designada «Barraca Animatógrapho». Estes cinemas de casa às costas estariam para a sua época como para a minha o da Praça da Batata..[4] Lugares de maravilha, espaços de sonho e emoções, mundos abertos ao prazer da aventura.

Quarenta anos depois de João António Pires se instalar com o «Salão Animatógrapho» no Largo de Santiago apresentando «espectáculos da moda» com «entrada gratuita às senhoras acompanhadas por um cavalheiro», eu sustinha a respiração perante os perigos que ameaçavam Tarzan, vibrava com a audácia de Sabu, admirava a coragem de John Wayne nas sagas do Oeste, gargalhava perante as absurdas peripécias em que se metiam o Bucha e o Estica e o Abott e o Costello. A ternura percorre a recordação dessas noites. Um sentimento de encanto domina as sensações saborosas que transformavam um prazer pueril em momentos absolutos de memória para toda a vida. Entregava-me com a total disponibilidade da alegria infantil e mergulhava nessa arte de sonhar que me acariciava o coração. Hoje tenho dificuldade em materializar tais instantes mas consigo sentir a excitação das horas que antecipavam as noites mágicas que incendiavam a minha imaginação.

[1] Histoire Illustré du Cinéma – 1º. vol., pág.17, colecção Marabu Université.

[2] O texto do jornal tem aux fulambaux quando, na realidade, escrevia-se, au flambeau. Inicialmente eram marchas iluminadas por archotes que “damas e cavalheiros” transportavam. Mais tarde os archotes foram substituídos por balões que nos santos populares derivavam em pequenas marchas de pátio designadas a fulambó. Estas marchas incorporavam parte de uma pequena “troupe” musical chamada sol- e-dó.

[3] É frequente encontrarem-se expressões como «terminou com um acto de Folies Bergères» ou «foram apresentados diversos números de Folies Bergères». Tudo me leva a admitir que seriam quadros de variedades com guarda-roupa adequado e mesmo um cenário.

[4]Chamada da batata por ali se realizar todas as segundas-feiras um mercado exclusivamente de venda de batata. Actualmente é a Praça Machado Santos.

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