OS MEUS DOMINGOS – ELOGIO DA MÁ EDUCAÇÃO – por ANDRÉ BRUN

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1881 - 1926
1881 – 1926

 

 

I

 

Há uns tempos a esta parte, desde que as velhas famílias ovarinas do Bairro da Esperança começaram a invadir as frisas e camarotes de primeira ordem dos nossos teatros, desde que os antigos frequentadores da Tendinha e do João do Grão todos os outonos vão fazer a sua cura de águas a Vidago e às Pedras depois de terem passado o verão no Estoril ou na Figueira da Foz, desde que, enfim, triunfaram na frente ocidental a Justiça e o Direito, é corrente ouvirmos certos espíritos das eras distantes em que um simples tostão valia cem reis, como qualquer centavo de agora, queixarem-se amargamente da falta de cortesia que vai por essa Lusitânia fóra.

Com efeito, se João Felix Pereira, que Deus tenha longos anos sem nós, voltasse a este mundo ao qual tentou outrora inculcar alguns princípios de boa educação, poria as mãos na cabeça, e, dando por mal empregado o tempo que perdeu, comentaria com a delicadeza que lhe era peculiar:

– Arre! Suas bestas!…

Poderão certos recordar com saudade os tempos do “V. Ex.ª dá-me licença?”, do “Com perdão de V. Ex.ª”  e doutras fórmulas de linguagem, que dentro em pouco só serão empregadas nos dramas históricos ou nas literaturas de escavação . Eu que, como o outro, sou muito amigo de César, mas sou mais amigo da Verdade, folgo que continuemos regressando a passos agigantados para as idades primitivas em que se não tinha ainda edificado essa catedral de hipocrisia que se chama a Boa Educação.

Os pais chineses (leiam Enciclopédia das Famílias, Vol. VIII, 1874), para evitarem que os pés de suas filhas cresçam, forçam-nas a usar uns borzeguins em que se atrofiam os já citados pés. Os pais europeus, porque era moda evitar que às crianças crescesse demasiadamente a sinceridade, logo de pequeninos, e na altura em que se torcem os pepinos, os forçavam a deixarem atrofiar a franqueza com que se deve caminhar na vida, impondo-lhes o hediondo borzeguim das regras do Bem Viver e da Civilidade.

E assim como as chinesas – pelo menos as que tenho visto nos leques e nas caixas de chá da Pérola da China – são uns pobres entes disformes movendo-se com dificuldade, assim certas pessoas bem educadas, que tenho conhecido e sempre evitei como a peste ou como a “cólera morbus”, iam pela existência fora dando nas vistas e sujeitando-se aos maiores ridículos.

Eram, no fundo, uns infelizes. Eles bem queriam pular e dar o seu couce como os outros: mas não podiam, coitados! Tolhia-lhes os movimentos o tal borzeguim da hipocrisia e a cada esquina indagavam da saúde de pessoas que lhes eram totalmente indiferentes, deixavam-se filar pelos botões do casaco por qualquer importuno e perdiam horas inteiras a ouvir histórias absurdas. Respondiam a cartas insípidas, felicitavam por cartões de visita pessoas com quem, no fundo, embirravam formidavelmente, elogiavam os insignificantes, estavam de acordo com os tolos, mudavam de opinião para agradar, atraiçoavam os amigos para dizer ámen aos inimigos, mentiam vinte vezes ao dia, aturavam maçadas tremendas tendo nos lábios um sorriso insípido de bailarina espanhola.

Felizmente, pelo que se vê, a espécie desses desgraçados está prestes a findar. Os poucos que ainda restam morrerão qualquer dia atropelados ao quererem subir para um eléctrico ou comprar bilhete para qualquer cinema. Por um certo tempo vai reinar uma era de sinceridade em bruto e o homem artificial, criado pela boa educação, desaparecerá da fauna indígena. Só haverá o homem tal como a Mãe Natureza o quere e como podemos apreciá-lo, genuíno e integral, no jardim das Laranjeiras, dentro da jaula do nosso avô Faustino.

05 de Março de 1923

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