ENTREVISTA A PAUL CRAIG ROBERTS SOBRE A CRIMEIA, A POLÍTICA ESTRANGEIRA AMERICANA E A TRANSFORMAÇÃO DOS MEDIA – por HARRISON SAMPHIR

Selecção e tradução por Júlio Marques Mota

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Entrevista a Paul Craig Roberts sobre a Crimeia, a política estrangeira americana e a transformação dos media

Por Harrison Samphir, 18 Março de 2014

De novo a Ucrânia - I

A península da Criméia foi controlada pelo Império Russo do século XVIII ao século XX, até que se tornou parte integrante de uma Ucrânia independente após a queda da União Soviética em 1991. Agora o país está fracturado depois de meses de manifestações e a Crimeia tornou-se o ponto de mira não intencional de uma guerra civil nascente que divide leste e oeste. Alimentada pelas atitudes agressivas dos Estados Unidos e com uma Rússia que assumiu uma postura defensiva resolvida para proteger os interesses do povo ucraniano de etnia russa, a situação rapidamente degradou-se  rapidamente e numa  brutal escalada. O futuro do continente europeu está em jogo.

Mesmo para o observador mais atento, a actual crise na região sudeste da Ucrânia é difícil de interpretar. A compreensão da situação pode ser turvada pela distância geográfica, perturbada pelos relatos inconsistentes e cegos pelos preconceitos que são feitos pelos media. Por causa dos media sociais e digitais traiçoeiramente agressivos dilui-se a compreensão dos elementos sócio-políticos complexos: a investigação independente perde a sua legitimidade e as vozes críticas entram num barafunda de informações anárquicas. Como descobrir o sentido da realidade neste dilema?

Paul Craig Roberts é um antigo subsecretário de Estado das Finanças nos Estados Unidos no tempo de Reagan, foi redactor-adjunto do Wall Street Journal. Ele seguiu a situação ucraniana de perto e falou para Truthout da longa história desta crise, da influência dos media (onde trabalhou durante décadas) e das provocações perigosas dos dirigentes ocidentais. Autor de mais de dez livros, o seu livro mais recente tem como título The Failure of Laissez Faire Capitalism (O falhanço do capitalismo do Laissez-Faire,). Esta entrevista foi feita a 12 de Março de 2014.

P. Já publicou muitos artigos sobre o actual impasse entre a Rússia e o Ocidente em torno da situação na Crimeia. Como é que avalia a actual situação? Que tipo de luta pelo poder se estará a desenrolar?

E bem, eu acho que seria um erro procurar ver os acontecimentos na Crimeia como um duelo pelo poder entre a Rússia e os Estados Unidos. O que aconteceu na Ucrânia é que os Estados Unidos organizaram e financiaram um golpe de estado. E o golpe de estado deu-se em Kiev, a capital. Intencionalmente ou por negligência, os actores do putsch incluem nacionalistas de extrema-direita, cujas raízes remontam às organizações que lutaram ao lado de Hitler durante a segunda guerra mundial contra a União Soviética. Estes elementos destruíram monumentos de guerra russos que comemoravam a libertação da Ucrânia dos nazis pelo exército vermelho e que também celebravam a derrota do grande exército de Napoleão pelo General Koutouzov. Isto, portanto, levantou muita preocupação ao sul e a leste da Ucrânia, que são tradicionalmente províncias russas. A Crimeia foi acrescentada à Ucrânia em 1954 por Khrushchev, secretário geral do partido comunista. Estas duas regiões russas fizeram parte da Rússia durante muito mais tempo do que o tempo que têm os Estados Unidos como nação. Este repovoamento  poderia ser sido  feito na aépoca para enfraquecer os elementos pró-nazis do oeste da Ucrânia, porque acrescentou uma substancial população russa na Ucrânia que tendia a equilibrar os ultra-nacionalistas no ocidente da Ucrânia. Além disso, Khrushchev era ele mesmo ucraniano. A passagem da Crimeia para a Ucrânia não era na altura relevante no momento em que tudo fazia parte da União Soviética. Quando a União Soviética entrou em colapso enquanto entidade política e que as autoridades fracas que ai estavam – sob a pressão dos Estados Unidos – aceitaram a sua dissolução, a Ucrânia tornou-se independente, mas manteve as províncias que eram anteriormente russas. A população da Crimeia na sua maioria é russa, e o mesmo se pode dizer a leste da Ucrânia. Essas pessoas disseram, “Nós não queremos ter nada a ver com esse governo em Kiev, que proíbe a nossa língua e que destruiu os nossos memoriais de guerra e que nos ameaçam de muitas maneiras.” Eles seguiram os mesmos passos legais; os mesmos procedimentos das Nações Unidas, os mesmos procedimentos dos tribunais internacionais. Então tudo o que aconteceu é rigorosamente legal. E quando John Kerry e Obama dizem o contrário, eles mentem com todos os dentes que têm na boca. O que dizem não passa de mentiras flagrantes, mentiras vergonhosas, uma vergonha. Isto não é discutível nem é uma questão de opinião. É uma questão de direito.

De novo a Ucrânia - II Soldados russos em Perevalne na Crimeia, 5 Março de 2014 – foto  via Shutterstock

Portanto, o Parlamento da Crimeia seguiu esses procedimentos e agora declarou que a Crimeia é independente. O voto foi dado às pessoas em 16 de Março… E então não houve invasão russa. Isso é facilmente demonstrável. As tropas russas estão na Ucrânia desde os anos 90. Isto tem a ver com os contratos de arrendamento que têm sobre a sua naval do mar Negro [Sebastopol], porque quando a Ucrânia obteve a independência, a Rússia não ia certamente abandonar o seu porto de águas quentes. Os termos da separação dizem que a Rússia tem um aluguer até 2042. São 16 mil soldados que aí estavam e segundo o acordo com a Ucrânia, eles podem aí estacionar até 25.000, com um número de aviões, tanques e artilharia. Tudo isso está especificado e é bem conhecido, posto em questão pelas mentiras de Washington – e estas mentiras repetem-se novamente e até ao limite da saturação nos chamados media dos EUA. O problema que permanece agora é o leste da Ucrânia, porque aí as pessoas também vieram para a rua para pedir ao seu governo local que se separe de Kiev. Tendo mostrado à evidência a sua incompetência na Crimeia, Washington precipitou-se e designou os multimilionários oligarcas [(Igor Kolomoisky et Serhiy Taruta) como governadores dessas regiões russas [Donetsk e Dnepropetrovsk].] Onde o problema será resolvido é no leste da Ucrânia porque Putin afirmou que ele haveria intervenção militar a não ser que a violência seja usada contra a população russa do leste da Ucrânia. Não há garnde coisa que Kerry ou Obama possam aí fazer. Mas se o resultado é que o leste da Ucrânia retorne à Rússia, a parte ocidental oeste da Ucrânia será capturada, forçada a um plano de austeridade do FMI [Fundo Monetário Internacional], saqueada pelos bancos ocidentais e colado à NATO, enquanto as bases americanas de mísseis anti-balísticos serão instaladas na Ucrânia Ocidental. Isto intensifica a ameaça estratégica para a Rússia que Washington continua a quer impor desde o regime de George H.W.Bush (Bush pai, nota do Editor) quando ele renegou os compromissos assumidos por Reagan de não levar a NATO para a Europa Oriental. Esses mesmos acordos foram violados quando Washington se retirou do Tratado ABM [Anti-Ballistic Missile] em 2002 a fim de construir uma defesa contra mísseis balísticos. Estas são pois provocações extremas e elas são perigosas. É o mesmo tipo de comportamento que nos levou à primeira guerra mundial.

Nos seus últimos textos, Craig examinou o fracasso dos media americanos, o chamado mainstream em informar objectivamente sobre a Crimeia – ou seja, sem reflectirem um enorme viés em direcção a um campo ou a outro. Será que nos pode falar sobre o papel desempenhado pelos meios de comunicação alternativos em relação à crise na Ucrânia?

Uma parte muito importante de tudo isto refere-se a algo que aconteceu no final do segundo mandato de [Bill] Clinton. Ele permitiu que cinco mega-empresas consolidem os meios de comunicação anteriormente independentes e dispersos. Tudo o que eram as redes independentes, tais como ABC, NBC, CBS, CNN, tornaram-se elos de uma engrenagem, de um império dos media muito grande. O valor dessas grandes empresas mediáticas reside nas suas licenças de transmissão federais: eles não podem ir contra o governo e esperar depois que as licenças lhes sejam renovadas. Outra grande mudança é que essas companhias dos media já não dirigidas por jornalistas. Elas são dirigidas por altos executivos da indústria da publicidade e por antigos funcionários governamentais. E o seu único interesse é o de querer manter ou aumentar o valor líquido da empresa e os fluxos de receitas da publicidade. Consequentemente, não há medias independentes. Eles não podem tomar posição sobre qualquer assunto na direcção oposta à propaganda do governo. É parte do problema, exactamente isto.

Outra parte do problema é que durante a longa guerra fria, a União Soviética, que representa a Rússia no espírito das pessoas, foi eficazmente diabolizada. Esta diabolização persiste. Lembremo-nos que o colapso inicial da URSS funcionou e de que maneira a favor do Ocidente. Os dirigentes ocidentais poderiam facilmente manipular [Ieltsin], e vários oligarcas foram mesmo capazes de entrar para o governo e saquear os recursos do país. Muito dinheiro israelita e americano tomou parte nesse assalto. Quando Putin chegou e começou a pôr um fim a este hold-up  e a tentar colocar o país em ordem, passou a ser diabolizado. Além disso, como Victoria Nuland, o Secretário de estado assistente [dos assuntos euro-asiáticos e europeus] o reconheceu quando falou no National Press Club em Dezembro passado, os EUA investiram US $5 mil milhões para alinhar a Ucrânia com os seus interesses, desde a revolução laranja que falhou [2004]. Eles certamente gastaram várias vezes mais esse montante com as ONGs na Rússia. Existem pelo menos 1000 organizações não-governamentais no país, que são financiadas por Washington. Isso continuou por muito tempo e só no ano passado é que Putin finalmente disse que essas organizações que são financiadas pelo dinheiro dos EUA devem ser registadas como agentes estrangeiros. Isto é o que é, claramente, a política dos EUA. Se qualquer um de nós trabalha (nos EUA, nota do Editor) com dinheiro estrangeiro – a menos que seja de Israel – deve-se então ser registado como um agente estrangeiro. Portanto, quando Putin passou a aplicar as mesmas regras, este passou a ser diabolizado. Então, tem-se toda esta exposição através de gerações de pessoas para uma propaganda que diaboliza cada aspecto da Rússia nos Estados Unidos. Então se alguém vos disser que a Rússia enviou tanques para a Crimeia, simplesmente esta afirmação encaixa num discurso pré-existente.

Também sou um antigo redactor do Wall Street Journal e colunista de todas as principais publicações, e testemunhei pessoalmente a mudança nos media e das pessoas no seu seio. Por conseguinte, já sei de antemão o que eles vão dizer ; posso antecipar-me e escrever  o texto antes mesmo que eles apareçam nas ondas/na antena/ a falar-nos do assunto . É algo que já dura há bastante tempo. Algo semelhante aconteceu com as armas iraquianas de destruição maciça. Era uma mentira repetida uma e outra e outra vez. Até mesmo o New York Times não foi ver o Inspector em armamentos que nós enviamos para o Iraque, Hans Blix! Em vez disso, Judith Miller repete uma mentira sem parar nas páginas do jornal. Isto reflecte uma total falta de integridade. Uma das principais razões para isso é que muitos deles sabem que são incapazes de dizer a verdade, caso contrário serão demitidos. Eles sabem que é inútil o apresentar ao seu editor uma história que contradigas o Presidente ou o Secretário de Estado ou a CIA ou NSA. Ele ou ela vai-vos e olhar e perguntar se estamos a ficar loucos ? Será que queremos que sejamos todos despedidos? Então eles mesmos nem sequer se atrevem a enfrentar o seu chefe de redacção. É um ambiente bastante corrupto, e que deve ser mortal para a alma. Mas isso é o que é ser uma jornalista do mainstream hoje.

Pensando no seu tempo enquanto esteve na Administração como ministro-delegado das Finanças sob Ronald Reagan, como é que a política de provocação a nível mundial mudou? Os conflitos no estrangeiro são vistos de forma diferente agora do que em qualquer outra altura?

Ah sim, mudou enormemente, em dois aspectos cruciais. Uma é que a União Soviética e a China comunista existiam e eram enormes restrições ao poder americano. Os EUA simplesmente não poderiam desembarcar e fazer saltar os países através do Médio-Oriente, por exemplo. Estas restrições para o poder americano deixaram de existir. A guerra fria acabou, e as alianças que dela faziam parte desapareceram. Quando eu estava na administração Reagan, os neoconservadores não tinham emergido como a força ideológica que eles têm hoje. Eles não tinham escrito os seus manifestos apelando à hegemonia dos EUA sobre o mundo.. Consequentemente, não havia nenhuma agenda em Washington ou na Administração de Reagan sobre a hegemonia do mundo. O tratamento de Reagan para com Gorbachev para não ganhar o de querer ganhar a guerra fria, já o dissemos várias vezes. O fim pretendido é que esta guerra fria acabasse. Os neoconservadores surgiram em força durante este período, mas eles estavam longe de ter o mesmo poder ou influência que tiveram sob Clinton, Bush e agora Obama. Na verdade eles causaram tantos problemas a Reagan, que este despediu uma série deles. Eles estavam por detrás dos Contras na Nicarágua. Alguns deles deixaram-se verdadeiramente acusar e condenar – como Eliot Abrams, que foi Secretário de Estado adjunto. Ele e os outros foram mais tarde agraciados por George H. W. Bush, mas a administração Reagan em si foi muito fortemente contra os neoconservadores. Eles foram despedidos, colocados fora do governo. Richard Perle foi mesmo despedido do Bureau de Conseil Présidentiel sur le Renseignement. Os neoconservadores emergiram com ataques sobre a Sérvia – o que chamamos os ataques da NATO – e do assalto ao Kosovo, que é tirado à Sérvia e dá-se a sua criação como um protectorado dos EUA. Em seguida, a sua influência explodiu sobre os primeiros anos de Bush. Toda a unidade de segurança nacional, o Pentágono inteiro, o Departamento de Estado estavam cheios de neoconservadores como funcionários. A agenda estava aí. Ela tinha sido definida nos documentos de projeto para o New American Century e uma boa parte do governo era gerida pelos seus representantes. A administração Obama dispõe de muitas destas mesmas pessoas, mas doravante estas podem ir bem mais longe porque dispõem de mais recursos para financiar grupos contestatários  como se viu na Ucrânia.

É uma coisa perigosa o que se está a fazer. Os Russos não podem aceitar ameaças estratégicas deste tipo; é muito simplesmente demasiado forte. Penso que aquilo com que conta Putin, se ler a sua conferência de imprensa de 4 de Março, são os Europeus. Dado que não têm uma agenda posterior, não quererão pagar o preço de permitir aos EUA desencadear uma guerra, porque esta os afectaria. Os Russos sabem que os Estados Unidos alteraram a sua doutrina de guerra para incluir as armas nucleares, o que mudou em 2010 para permitir os primeiros ataques preventivos. Os russos sabem bem que isto não é dirigido contra o Afeganistão ou contra o Iraque, mas contra eles. Quando se deixa de dizer a um país potente que podemos manobrar de uma tal maneira que deverá ser atacado, é um comportamento completamente imprudente.

Que podem fazer as pessoas comuns para exprimirem a sua apreensão sobre os temas que aqui evocou? Como é que a a crise evoluirá a partir daqui?

Deveriam sair para as ruas. Não há provas que o povo americano apoie a ingerência de Washington na Ucrânia. E deveriam sair e manifestarem-se contra esta ingerência, porque pode gerar uma guerra de dimensões incalculáveis e até mesmo com o uso de armas nucleares. O governo EUA violou cada norma do direito internacional e quase a totalidade das leis americanas. É a tirania. Uma outra questão: de acordo com Obama e Kerry, e ainda com os meios de comunicação social do mainstream, a Rússia deve ser punida por ter intervindo na Crimeia. Isto todos nós o ouvimos desde o início desta situação. Pois bem [a 11 de março] Obama e Kerry protestaram que a Rússia tenha intervindo na Crimeia e a querer bloquear a autodeterminação do povo da Crimeia. Pediram à Rússia que parasse o referendo! Então agora, por um canto da boca, Washington condena a Rússia para uma intervenção que não efectuou e, de outro canto da boca, pede que intervenha e retirem ao povo da Crimeia o seu direito à autodeterminação. E se não fizerem isso, disse Kerry, far-vos-emos pagar. É flagrante. E não há uma só palavra contra isso nos grandes jornais.

Paul Craig Roberts on Crimea, US Foreign Policy and the Transformation of Mainstream Media

http://truth-out.org/opinion/item/22542-paul-craig-roberts-on-crimea-us-foreign-policy-and-the-transformation-of-mainstream-media

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