CONTOS & CRÓNICAS – A reencarnação de Luís de Camões (ou o desacerto de uma parelha) -V – por Manuela Degerine

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Talvez os leitores agora pensem que “The Narrow Corner” narra a história de um inglês que traduz “Os Lusíadas” no arquipélago de Kanda-Meira… Ora não é verdade: Frith é uma personagem secundária. A narração segue o ponto de vista do doutor Saunders que, no regresso a Fuzhou, acompanhado pelo criado Ah Kay, tendo embarcarcado com Nichols e Fred Black, vai observando estes companheiros de viagem. Há as circunstâncias misteriosas que levaram Nichols a navegar com o australiano. Há ocorrências várias: encontram – por exemplo – um barco que pesquisa pérolas, cujo mergulhador morre de disenteria; o capitão Nichols encarrega-se, com grotesco e solenidade, da cerimónia funerária. Há a tempestade durante a qual o capitão revela uma faceta respeitável. Quando eles desembarcam na ilha de Kanda, o leitor vai na página 100 num total de 248; e ainda ignora quem é o protagonista do romance. Saunders? Nichols? Black? Qualquer dos três poderá sê-lo, tudo depende do que se seguir. É então que conhecem Eric Christessen; o jovem passeia-os pela ilha e leva-os a casa de Frith. Surge Louise. Uma beldade entre dois rapazes: Christessem, que ela sempre conheceu, bom rapaz mas pouco atraente, Black, que ela não conhece, muito atraente mas sabe-se lá o quê… Lemos a ficção de um amor? De uma desilusão? De algum crime? Somerset Maugham não opta – evidentemente – pelo desenlace mais óbvio.

Interrompo aqui o resumo para não estragar aos leitores o prazer da descoberta. Embora – que eu saiba – “The Narrow Corner” não se encontre publicado em português, poderá em breve algum editor vir a lembrar-se deste romance.

Quanto à versão francesa que por curiosidade verifiquei… Constitui mais um episódio da série “Traduttore traditore”, sem embargo de a tarefa ser realizada com grande competência linguística, porquanto o tradutor (E. R. Blanchet) se autorizou a suprimir não só a epígrafe, não só o prefácio, mas frases, parágrafos, páginas e até sequências que, vistos do seu canto muito estreito, lhe pareceram supérfluos. E, nesta hecatombe, pereceu muito do que a Frith – o tradutor quase perfeito – ser referia… Para concluir resta-me portanto lamentar que E. R. Blanchet não fosse uma reencarnação de Somerset Maugham.

 

 

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