OS MEUS DOMINGOS – VIAGEM À RODA DE UMA HISTÓRIA – por ANDRÉ BRUN

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1881 - 1926
1881 – 1926

 

I

Domingo passado, depois de jantar, estava estiraçado sobre um dos vários Mapples da minha casa de mastigar. Puxando o fumo leve dum cigarro, cismava que, se me não houvesse cabido a sorte de ser um dos escritores mais apreciados na margem europeia do vernáculo – como diria Coelho Netto – teria gostado de ser cabeleireiro de senhoras.

De súbito, do lado oposto da mesa que vários criados tratavam de levantar, o velho filósofo amigo, contratado a peso de ouro para me contar, depois das refeições e na altura do café, uma história digestiva, tomou a palavra nos seguintes termos:

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“Havia em R, cinquenta ou sessenta anos depois de Cristo, um rapaz na flor da idade, chamado Julius Publius Trimalcião Minimax. Pertencia, como o seu apelido indica, a uma velha família de extintores de incêndios e, ainda o Julius não saíra da alfândega materna, já seu pai, apontando a rotundidade da esposa, dizia a quem o queria ouvir:

– Meu filho há de ser bombeiro voluntário, ainda mesmo que não queira…

Quantas mães igualmente, ainda no quarto mês de doces esperanças, murmuram, pondo laçarotes cor de canário em touquinhas verde espinafre:

– Meu filho, se não sair rapariga, há de estudar para veterinário da armada ou preto de jazz-band

Ilusão a de Minimax pai! Ilusão a dessa mães supracitadas! Ninguém foge à sua sorte e cada qual vem, finalmente, a ser apenas aquilo que está escrito lá em cima no grande livro de Destino.

Julius Publius Trimalcião Minimax cresceu e, ao ter idade de escolher uma carreira, declarou terminantemente que se estava nas tintas para pôr capacete quando tocasse a fogo. Sua mãe, desolada, aconselhou-lhe que, ao menos, ficasse à testa da mercearia muito bem afreguesada que seu pai tinha na Via Appia, à esquina da Suburra. Abanou igualmente as orelhas e declarou, batendo o pé, que queria ser mártir.

É preciso explicar que nessa época começava a estar muito em moda essa gracinha. Rapazes da melhor sociedade, meninas muito prendadas e adultos em tamanho natural faziam gosto em se deixarem martirizar e as autoridades, que preferiam não contrariar os seus administrados, organizavam o melhor que podiam perseguições religiosas de toda a espécie.

Servius Explendidus Mictorius, prefeito da cidade e inventor dos bem conhecidos edifícios do mesmo nome, cada domingo anunciava no Circo de Roma matinées em que cinquenta ou sessenta amadores de ambos os sexos exibiam as suas habilidades de mártires aos aplausos unânimes dum público em delírio.

Os pais de Minimax bem se cansavam a dizer-lhe que aquilo não era carreira que garantisse um futuro, que o ser mártir sempre acabava por acarretar sensaborias e incómodos. Nada desconvencia o teimoso. Havia de ser mártir à força.

Assim que pôde inscreveu-se na C.A.C.A. (Confederação Atlética dos Cristãos Assanhados), comprou uma túnica de linho branco e começou a treinar-se. Umas vezes os seus professores de martírio amarravam-no a um poste, untavam-no de gasolina e deitavam-lhe fogo. Outras vezes tinha que deixar-se devorar por um terrível leão da Numídia ou soltavam-lhe às canelas uma alcateia de lobos que não comiam havia três semanas.

O pobre rapaz a tudo se sujeitava de bom grado na doce esperança de divertir, uma bela tarde e durante uma curta meia hora, o César, a Cesária, os augustais, as vestais, os minerais e dúzia e meia de Lucrécias, de Eunices e de Marias Franciscas. O pateta não cismava senão na glória de, em pleno circo, ao rumor estrídulo das fanfarras e aos gritos desvairados da multidão, sentir os seus ossos estalarem como caniços entre as maxilas tremendas duma fera da Núbia em jejum.

A família já estava conformada. Às matronas das suas relações, que iam à noite lá a casa fazer crochet e tomar chá, a mãe até já dizia com orgulho:

– Sabem que o Juliusinhus sempre vai ser mártir um dia destes…

E as visitas ficavam com muita inveja, como é próprio de todas as visitas.

 

8 de Abril de 1923

 

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