CONTOS & CRÓNICAS – “MAURÍCIO VILAR LANCHOU BEM, MAS SENTE-SE UM POUCO APERTADO…” – por João Machado

 

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Hoje é quarta-feira, a Heloísa foi ao mercado, na companhia da nossa vizinha Henriqueta e da Maria Antónia. Logo de manhã, ainda não eram nove horas, dormia eu muito descansado (esta noite dormi que nem uma pedra), acordou-me para me informar de que ia sair. Perguntou-me se me ia pôr a estudar, como tinha combinado ontem com a Maria da Luz, para rever os apontamentos das aulas que ela me tinha passado. Devo ter parecido um pouco assarapantado, porque ela, à laia de despedida, disse-me assim:

– Então, vê lá, não falhes ao combinado. Já tens o café pronto…

De modo que lá me levantei, tomei o café, comi uma torrada que ainda não estava fria, e pus-me ao trabalho. Revi os apontamentos que a Maria da Luz me passou ontem, e vim escrever-lhe.A minha mãe ainda não voltou, o que não é de estranhar, porque o mercado ainda é longe, e ela, quando vai com a Henriqueta, demora-se sempre mais. A nossa vizinha, desde que adoeceu, anda devagar, e têm sempre muito para contar uma à outra. Já me estou a preparar para as gracinhas da Maria Antónia…

Mas o lanche, ontem, correu muito bem. Saímos de casa, a Heloísa e eu, logo a seguir ao almoço, nem passámos no café, com algum espanto da Josefa e da D. Gertrudes Acabadinho, que estavam sentadas na esplanada, apesar do tempo ameaçar chuva. Ainda nos acenaram, mas nós dissemos-lhes adeus, continuámos a descer a rua e fomos apanhar o metro.

Fomos ter com a Maria da Luz à biblioteca da faculdade. Estava vazia, muito silenciosa, como é costume a seguir ao almoço. A minha amiga ficou muito contente quando nos viu, e deu dois grandes beijinhos à minha mãe, depois das apresentações. Compreende, era a primeira vez que se encontravam. Não se o meu amigo alguma vez passou por uma experiência semelhante, mas o facto é quase me esquecia que as duas nunca se tinham encontrado. Enfim, parece-me que não falhei no protocolo. Pelo menos, nenhuma das duas me chamou a atenção para alguma falha. Logo a seguir, deixámos a biblioteca e fomos passear um pouco, para mostrar à minha mãe a faculdade e a seguir o estádio. Imagine que ela nunca tinha lá ido, apesar de eu andar por ali (a expressão realmente não é inexacta) há bem um quarto de século. A Maria da Luz parecia contente, e a Heloísa era toda sorrisos. Correu tudo muito agradavelmente. Felizmente, não demos de caras com a D. Marisa Matias (perdão, com a Dr.ª Marisa Matias), ou com qualquer outra pessoa desagradável. Seriam umas quatro horas quando chegámos à esplanada. Sentámo-nos na parte de dentro do café, porque estava a ficar frio.

– Está mais agradável aqui dentro. – dizia a minha mãe.

– Quando o tempo estábom, a esplanada é óptima. – respondia a Maria da Luz.

Continuámos a conversa neste tom durante um bocado. A minha mãe perguntou pela D. Belisária e pelo senhor Tructesindo, os pais da minha colega. Esteve um bom bocado a elogiar o bolo da D. Belisária. A Maria Luz, muito comovida, garantiu-lhe que traria outro ainda melhor, a próxima vez que fosse à Covilhã. Então a Heloísa encheu o peito, inclinou-se para a frente, e fez o convite:

– Mas antes disso, a Maria da Luz tem de ir lá a casa jantar. Para a semana, a seguir ao vosso exame.

– Ai não. – respondeua minha amiga. – Não quero incomodar.

Foi a minha vez de entrar nas amabilidades. Procurei falar com toda a doçura.

– Oh, Maria da Luz! Então… Tanta generosidade que tens tido comigo, e não vais comer um jantarinho a minha casa? Olha que a minha mãe cozinha muito bem. Não tenhas receio.

Pus um ar brincalhão ao acabar a última frase. A Heloísa deu-me um safanão e soltou uma gargalhadinha. A Maria da Luz arvorava um sorriso comovido.

– Têm a frequência em que dia?

– Da próxima quinta-feira a oito dias.

– Então que tal no dia seguinte? Na sexta-feira?

– Está bem. – respondeu a Maria da Luz, com alguma convicção. No sábado a seguir não vou a casa.

O meu amigo vai-se rir com toda esta conversa. Mas havia de ver o ar satisfeito que a minha mãe tinha, todo o resto da tarde. Digo-lhe que fiquei muito satisfeito com o lanche, e por a minha amiga ter aceite o convite. Mas não lhe escondo que, ao mesmo tempo, estou espantado com a maneira como se entenderam as duas. No outro dia senti uns calafrios quando a Maria Antónia me falou no irmão da D. Josefa; ontem, quando regressávamos a casa, depois de nos despedirmos da Maria da Luz, senti qualquer coisa de semelhante. É capaz de me explicar porquê?

 

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