AS RAZÕES DA CRISE NA EUROPA. ANÁLISE DO CONTEXTO GLOBAL E DAS RESPOSTAS POSSÍVEIS À DRAMÁTICA SITUAÇÃO ACTUAL – FRANÇA: RE-INDUSTRIALISAÇÃO PARA UM DESENVOLVIMENTO SOBERANO E POPULAR – por BERNARD CONTE – I

Falareconomia1

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

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70º  aniversário do programa do Conselho Nacional da Resistência

Nice , 12 Abril 2014

França: a re-industrialisação para um desenvolvimento soberano e popular

Bernard Conte

Enseignant – Chercheur en économie

Université de Bordeaux – Sciences Po Bordeaux

Comité Valmy

 Le blogue de Bernard CONTE: France: la ré-industrialisation pour un développement souverain et populaire 

24 de Abril de 2014

 

Introdução

Depois da segunda guerra mundial começaram os Trinta gloriosos anos, caracterizados por um crescimento industrial sustentado, pela melhoria contínua do nível de vida dos assalariados e pela densificação da classe média. É que se chama o sistema fordista caracterizado pela produção em massa, pelo consumo de massa e pelo Estado-Providência. Os Trinta gloriosos anos selaram um compromisso («uma aliança») temporário entre a classe média, essencialmente assalariada, e o capital industrial. A coincidência geográfica da produção e do consumo no Norte gerava um círculo virtuoso que conduzia a um desenvolvimento relativamente autocentrado.

A crise do fordismo na sua versão inicial (crise de produtividade ou de baixa tendencial da taxa de lucro) provocou a adaptação do sistema capitalista que se financeirizou e mundializou , reordenando a seu proveito, o sistema fordista numa dinâmica justificada e apoiada pelas teses neoliberais que supervalorizavam o individualismo, o laisser-faire, laissez-passer. O sistema fordista é reestruturado, as zonas geográficas de produção e de consumo são dissociadas pela deslocalização das produções para os países de baixos custos (salário directo e indirecto, fiscalidade, ecologia…) e a manutenção do consumo de massa no Ocidente realiza-se pela via de um recurso maciço ao crédito.

A viragem, iniciada por Richard Nixon a partir de 1971, foi alcançada no final dos anos 1970. A nova configuração do capitalismo financeirizado implica o comércio livre, a livre circulação dos bens, dos serviços e dos capitais. A exploração mundializa-se, sob o pretexto de competitividade, e colocam-se em concorrência os trabalhadores à escala planetária, o que é defendido pelas teses neoliberais.

Conhecem-se as devastações das políticas neoliberais tendentes a estender a todo o mundo a situação do Terceiro Mundo, globalizando a estrutura social fortemente dualizada dos países mais pobres. É a polarização ricos-pobres do conjunto das sociedades que implica a eutanásia das classes médias [1]. A dinâmica neoliberal embalou-se progressivamente, o que provoca as crises recorrentes que se tornam cada vez mais graves… Apesar disso, a solução retida foi a de intensificar o neoliberalismo e, para o impor, o económico e o social foram desligados gradualmente da política, a democracia tornou-se virtual, o poder entregue “às elites”, que se comportam como verdadeiros vassalos dos “saigneurs”, e ainda entregues também aos peritos e os juízes.

 A crise actual, de uma profundidade inédita, parece despertar as consciências suscitando reacções , com estas a colocarem em causa o sistema e a criarem uma  oposição ao mesmo. Mas, para ser eficaz, este movimento deve assumir uma grande amplitude em redor de um projecto alternativo aglutinador credível. A concretização de um tal projecto não se poderá, pelo menos inicialmente, fazer num quadro institucional e geográfico demasiado vasto devido às divergências de interesses, de culturas… e às relações múltiplas e imbrincadas de dominação e de dependência. Além do mais, um tal projecto necessita que as forças centrífugas características da mundialização actual cedam o passo às forças centrípetas. Noutros termos, a extraversão ultrajante dos territórios geradora de exploração, de dependência, de empobrecimento generalizado deve ceder o lugar a um desenvolvimento mais introvertido que permita a auto-centragem para reduzir as dependências , para mobilizar as próprias forças, para definir e concretizar um projecto colectivo de desenvolvimento soberano e popular primeiro sobre uma base nacional.

O regresso a uma base nacional não é um retrocesso para a autarcia em França nomeadamente, este regresso justifica-se porque o colocar em prática um projecto alternativo ao neoliberalismo implica a desconexão, pelo menos temporária, com o sistema da mundialização imposta pela finança internacional apátrida. Ora, esta desconexão – esta desmundialização parece hoje como sendo largamente utópica num quadro mais vasto que a nação e impossível no quadro da União europeia.

Como foi repetidamente o caso no passado, a França deverá desempenhar um papel motor iniciando um caminho, uma dinâmica que se aparenta à do Conselho Nacional da Resistência (CNR) em 1944. Se o horizonte em termos de bem-estar do novo projecto se equiparar  ao CNR, não devemos deixar de referir que as condições históricas actuais são profundamente diferentes. Resulta daí que as vias e os meios para atingir o horizonte procurado deverão ser no mínimo adaptadas e mais provavelmente deverão terem  de ser repensadas.

No âmbito da realização do projecto de desenvolvimento soberano e popular, a re-industrialização do nosso país impõe-se. Mas, uma simples mudança da ampulheta para o fordismo da produção e do consumo de massa dos Trinta gloriosos é impossível, nem que seja somente por razões ecológicas. É necessário reorientar, de maneira radical, o processo de desenvolvimento.

Depois de uma curta descrição da situação socioeconómica actual da França, passaremos a desenvolver algumas problemáticas essenciais e proporemos algumas pistas de reflexão a propósito da re-industrialização da França no âmbito de um desenvolvimento soberano e popular.

A França em vias de subdesenvolvimento

Afirmo desde há vários anos que a França se a transformar no sentido do Terceiro-Mundismo porque está a caminhar na via do subdesenvolvimento. De maneira progressiva, o nosso país tem vindo a apresentar características económicas, sociais… que se aproximam das dos países que se qualificavam nos anos 1950-60 como sendo subdesenvolvidos: um fraco nível de desenvolvimento, uma taxa de pobreza importante, um desemprego permanente elevado, o nível de  dependência externa, um fraco nível de industrialização, trocas externas desequilibradas [2]…

O declínio no desenvolvimento humano

Uma referência ao índice do desenvolvimento humano (IDH) do PNUD mostra-o claramente. Com efeito, em 1995, a França situava-se na 2ª linha da classificação dos países de acordo com o IDH, atrás do Canadá e, em 2012 o nosso país reencontra-se à 20ª linha.

A França perdeu 18 lugares na classificação mundial, o que representa quase um retrocesso de uma linha por cada ano naquela tabela. “Se a tendência prosseguir pode-se temer que o nosso país se venha a encontrar na 60ª linha da classificação de acordo com o IDH em 2052, ou seja ao nível do Panamá, exactamente depois de Cuba e antes do México” [3].

A pobreza estende-se e aprofunda-se

 “A miséria persiste na França” diz-nos o l’Observatoire des inégalités, em Outubro de 2013. Registam-se “2 milhões de pessoas que vivem com menos de 656 € por mês, 3,6 milhões de mal-alojados e 3,5 milhões de beneficiários da ajuda alimentar [4]”. O número de pobres está em crescimento constante. Por exemplo, o número de beneficiários do rendimento de solidariedade activa (Rsa), pago  pelas caixas de abonos de família (CIF) aumentou “de 7,2% entre o final do ano 2012 e o de 2013” [5] e o número de beneficiários “teria conhecido uma nítida aceleração durante o último trimestre de 2013 [6]”. “Na França, mais de 9 milhões de pessoas vivem abaixo do limiar de pobreza do qual cerca de 4 milhões vêm procurar ajuda junto das associações de ajuda alimentar, entre as quais os Restaurantes do Coração [7]”. O empobrecimento da população está correlacionado fortemente com a subida do desemprego.

(continua)

________

[1] Le phénomène de laminage des classes moyennes est diversement décrit: « classes moyennes à la dérive », « déclassement », « prolétarisation des classes moyennes »…

[2] « L’insuffisance alimentaire, les faiblesses de l’agriculture, la faiblesse du revenu national moyen et des niveaux de vie, une industrialisation réduite, une situation de subordination économique, un secteur commercial hypertrophié, l’importance du sous-emploi, la faiblesse du niveau d’instruction, un état sanitaire défectueux… », Yves Lacoste, Les pays sous-développés, Paris, PUF, 1963. pp. 7-27. Voir également, G. Cazes et J. Domingo, Critères du sous développement, Paris, Bréal, 1984.

[3] Bernard Conte, «La France se Tiers-mondialise? », Agoravox, 18 mars 2013,

http://www.agoravox.fr/actualites/economie/article/la-france-se-tiers-mondialise-132575

[4] « La misère persiste en France »,

http://www.inegalites.fr/spip.php?article1648&id_groupe=9&id_mot=76&id_rubrique=123

17 octobre 2013.

[5] RSA conjoncture, n°5 mars 2014,

http://www.caf.fr/sites/default/files/cnaf/Documents/Dser/rsa%20conjoncture/Rsa%20Conjoncture%20n%C2%B0%205.pdf

[6] Idem.

[7] Le Matin, « La famine touche l’Europe », 05/12/2013,

http://www.lematin.ch/monde/La-famine-touche-l-Europe/story/20202354/print.html

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