BISCATES – Portugal à la minute. A história de um mercado – por Carlos de Matos Gomes

biscates

Antes de enviarem um quadro para um dado país as multinacionais entregam-lhe um dossiê com elementos úteis à sua integração. Normalmente esse dossiê contém uma sinopse da história do país e elementos caraterizadores da situação actual. Este é o exemplo, ficcionado, daquela que uma multinacional americana entregaria aos seus quadros apátridas destacados para Portugal:

Portugal, ditadura colonial durante 47 anos do século XX, regime económico de monopólios estatais e oligopólios para estatais do tipo Rússia atual: um ditador e meia dúzia de oligarcas detentores dos sectores essenciais da economia. Em 25 de abril de 74 um putsch militar derrubou a ditadura, deu independência às colónias e pretendeu implantar um regime comunista. Os revolucionários nacionalizaram a banca, tentaram realizar uma reforma agrária, promoveram a criação de sovietes para a construção de casas e escolas, decretaram a habitação, a educação e a saúde direitos universais, impuseram a participação dos operários na administração das empresas, instituíram um salário mínimo, estabeleceram uma pré-ditadura comunista.

As forças livres, chefiadas por Mário Soares, um antigo oposicionista, pró-europeu e pró-americano, com o apoio do clero católico e dos governos da NATO organizaram um golpe militar em 25 de novembro de 1975 para impor um regime de democracia ocidental e introduzir a economia de mercado. Obtiveram o apoio maioritário dos eleitores para o seu programa de desnacionalizações e privatizações.

O partido socialista, de Mário Soares, e um outro, designado social-democrata, dividiram o poder em Portugal até à actualidade. A política destes dois partidos, que se alternam no governo, é de total abertura aos mercados internacionais. A banca portuguesa foi rápida e completamente privatizada e novos bancos foram criados com capitais estrangeiros e entregues a uma nova geração de fiéis dos dois partidos. O controlo nacional do sistema financeiro a cargo do antigo Banco de Portugal é praticamente inexistente, funcionando como uma agência local do Banco Central Europeu. A Bolsa de Lisboa é pequena, aberta e permeável a negócios rápidos e sem deixar rasto. A informação privilegiada é prática corrente.

As terras que haviam sido sujeitas a uma reforma agrária foram entregues aos seus antigos proprietários e, a troco de subsídios, os governos desmantelaram a insipiente agricultura, mantendo embora um enorme ministério, que distribuiu fundos europeus, que jovens e novos agricultores utilizaram para comprar bens de luxo junto ao litoral. A floresta tradicional portuguesa foi destruída por fogos, que originaram bons negócios a empresas de bombeiros, aviões e helicópteros e está na sua quase totalidade substituída por eucaliptos necessários à indústria do papel.

As rentáveis indústrias de papel e do cimento ainda se mantiveram sob controlo nacional durante algum tempo, mas a do cimento já foi vendida a brasileiros. A entrada na UE, a ruinosa paridade entre a moeda nacional, o escudo, e o euro, a política dos grandes países europeus relativamente à China, com a admissão na Organização Mundial do Comércio, provocaram o colapso da indústria transformadora portuguesa, nomeadamente dos sectores tradicionais do têxtil e do calçado. Ao desemprego massivo, os políticos portugueses responderam com programas assistenciais e de formação e requalificação de mão de obra, entretanto despedida ao abrigo das novas leis do trabalho, numa bem sucedida política idêntica à de Margaret Thatcher em Inglaterra, nos anos 80.

Não existem hoje sindicatos de operários nem de trabalhadores da iniciativa privada, apenas resistem os da função pública e os dos sectores monopolistas, caso dos transportes. Portugal passou do interior para o litoral, através de um faraónico plano de obras públicas, estatais e municipais, pagos pela União Europeia, com auto-estradas em dupla e terceira via e urbanizações que ocuparam os terrenos com maior capacidade de produção agrícola. Em contrapartida, o caminho de ferro foi abandonado e mantem-se numa bitola ibérica, que nem permite ligação à nova ferrovia de alta velocidade espanhola.

O pequeno comércio foi destruído e substituído pelas grandes empresas de distribuição, que funcionam também como banca de agiotagem, impondo os seus preços e utilizando sem problemas técnicas de dumping.

O sistema político é muito liberal: não existe efectivo controlo do financiamento dos partidos, nem sobre o enriquecimento dos políticos. O sistema judicial está articulado com a política e desempenha o papel dos militares nas ditaduras do terceiro mundo: impõe o medo com uma repressão legal em nome de princípios que são aplicados segundo as conveniências da elite. Os escritórios de advogados destacam elementos seus como deputados do Parlamento e as leis são elaboradas e aprovadas de acordo com os interesses dos vários grupos da nova da oligarquia. A justiça portuguesa funciona como os toiros, o boi bravo que os portugueses utilizam nos seus jogos tradicionais: é imprevisível e perigosa quando apanha alguém, mas é fácil de ser torneada com técnicas simples de desvio de atenção com um pequeno pano agitado diante dos olhos.

A comunicação social portuguesa é completamente livre de constrangimentos, nem é sequer necessário declarar a propriedade dos meios. A maioria dos jornalistas exerce a sua função em regime de trabalho precário e temporário, pelo que é fácil controlá-los.

Durante os 39 anos de regime de liberdade e mercado livre instaurado a 25 de novembro de 1975 os dois partidos centrais do regime tiveram como única estratégia entrar na União Europeia, manter-se disciplinada e mansamente nela, obedecendo às directivas europeias de desarmamento dos sectores produtivos nacionais, expondo-os ao mercado mundial.

Individualmente e como grupo, os dirigentes do novo regime têm como objectivo sacar rendas internamente e colocar os lucros no exterior. Não têm escrúpulos nem sentimentos. Não os tenha também.

O segredo do êxito nos negócios em Portugal alcança-se colocando o dinheiro em offshores e contratando ex-políticos para se relacionarem com as autoridades locais. Localmente são designados por «facilitadores». Mensalmente ser-lhe-á enviada uma lista atualizada.

Leave a Reply