CONTOS & CRÓNICAS – A VIAGEM DE HELOÍSA E MAURÍCIO VILAR – por João Machado

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Meu amigo, há dias fui obrigado a suspender a meio a carta que lhe estava a escrever. Espero que me desculpe. Bem vê, só o senhor e eu sabemos desta correspondência. Era um sábado, à tarde, estava no meu quarto a escrever-lhe, descreviacomo passámos a noite de Natal aqui em casa, quando de repente a Heloísa entrou no quarto, como um ar muito preocupado, e perguntou-me, com a voz um tanto esganiçada:

– Maurício, em que dia partimos para a Covilhã? Temos de saber para fazer as malas, comprar os bilhetes e fazer tudo o que for preciso. Já combinaste as coisas com a Maria da Luz?

Tive que me conter para não dar um pulo. Ainda não tinha pensado no assunto. E vou-lhe confessar: os dias de Natal foram para mim muito agradáveis. Não tinha a menor vontade de fazer viagens, nem á Covilhã, nem a outro lado qualquer. Perguntar-me-á: e então a Maria da Luz? Só lhe posso responder: gosto muito dela. Mas senti-me muito bem no Natal, aqui em casa, na minha vidinha habitual. Mesmo sem ela. Acha estranho?

Mas, para já, deixe-me voltar à questão que a Heloísa me levantou. Após um instante de reflexão, olhei para ela, ali ao pé de mim, vi-a preocupada e até ofegante, e respondi, com um ar que procurei manter o mais sereno que possível:

– Confesso-te que nunca pensei que tivesses vontade de ir. – tremi por dentro, ao dizer isto. – Com o frio que está… e não te queria deixar sozinha.

Sai-me bem com a resposta. A minha mãe sorriu, pôs-me a mão no ombro, e sentou-se na cama, perto de mim. Um pouco pensativa, foi falando:

– Acho que é importante ires ter com a Maria da Luz. Acho que ela te aprecia muito. E estás numa idade em que é importante pensares arranjar uma companhia que não a tua mãe. Vives muito isolado, e a culpa é minha.

Meu amigo, acredite, senti-me petrificado. Nunca imaginei, nem nos maiores pesadelos, que alguma vez, sem o menor aviso, pudesse ouvir da minha mãe semelhante discurso. Já sei o que me vai responder: que tenho que pensar que a minha mãe, após uma longa vida a lutar por mim, tem tido dificuldade em aceitar a ideia de um dia se separar de mim, mas como pessoa responsável que ela é, quer o meu bem, e pensa no meu futuro. Assim, procura assegurar-se de que vai viver com uma boa esposa…

Bem, pode ter muita razão. Mas acho isso tudo muito complicado. E eu sinto-me bem, ao fim e ao cabo, aqui na minha casa. É verdade que pensei em casar com a Natália, por aí a fora, mas não casei, e aqui estou. Gosto muito da Maria da Luz, é verdade. Mas deixe-me continuar. O meu amigo quer fazer-me pensar, para eu conseguir compreender melhor a minha situação, eu sei, mas deixe-me ir contando o que se passou nestes dias.

A conversa com a minha mãe acabou ali. Eu ainda esbocei um protesto, pensei em dizer que me sentia muito bem assim, mas o facto é que fui telefonar à Maria da Luz. E disse-lhe que realmente, já que ela não vinha passar o fim do ano cá baixo, eu ia lá cima. Isto é, à Covilhã. A Maria da Luz ficou radiante. E disse logo que tinha de levar a minha mãe.

Na segunda-feira passada, logo de manhã,a Heloísa e eu saímos de casa, tomámos o metro e fomos apanhar o comboio. A minha mãe ia um bocado agitada, mas contente, ao que me pareceu. Comprámos os bilhetes, e ocupámos os nossos lugares numa carruagem que me pareceu muito confortável, com o dia frio que estava. Fiquei do lado do corredor. Pareceu-me que ela ia gostar de ir à janela. E não me enganei (também me acontece acertar, mesmo com a minha mãe, meu caro). Assim que partimos, a Heloísa pôs-se a espreitar e a tentar identificar as localidades que íamos atravessando. Falava muito, e sorria. A mim, veja bem, nem me deu vontade de dormir. Veja lá como eu estava.

Fomos muito tranquilamente por aí acima. Cerca de Abrantes, ela puxou de uma sanduíche para mim e outra para ela. Comemos devagar. O comboio ia quase vazio. Sentia-me sereno. Pensativo, mas sereno. Foi mais uns quilómetros adiante, que fiz a pergunta:

– Mãe, será que realmente nunca tinhas visto aquele homem que quase chocou contigo em Cascais?

Olhou para mim, primeiro, surpreendida, depois zangada. Respondeu-me, bastante irritada.

– Disse-te logo que não. Porque vens agora com essa pergunta?

Pronto. Lá me tinha metido num grande sarilho. A Heloísa olhava para mim, vermelha, e com um ar feroz, como poucas vezes lhe tinha visto. Senti-me muito abalado. Mas, não sei explicar, achei que tinha de insistir. Foi como que um impulso. Seria realmente um impulso. Até consegui falar sem balbuciar:

– É que na altura me pareceu que o conhecias. Olhaste-o tão espantada e ele a ti. Desculpa, é verdade que na altura me disseste que não o conhecias. Mas olharam-se de uma maneira tão viva. É que nem chocaram um com o outro. Pareciam tão zangados… E tu tinhas dito antes que nasceste em Cascais. Não é mal querer saber um pouco da tua vida…

Acho que, em quase quarenta e oito anos de vida, nunca tinha feito um discurso tão composto à minha mãe. Na realidade, não me lembro de ter enfrentado ninguém assim. Sabe, não gosto de aborrecimentos. Talvez seja mesmo medroso, como já me tem dito…

A Heloísa olhou-me mais um bocado com um ar furioso, depois amainou. Olhou outra vez para a paisagem. Depois, disse:

– Um dia hei de te contar, Maurício. Mas agora não. Não posso…

Imagine que até me fez uma festa na mão. Depois pôs-se a olhar para a paisagem até que chegámos à Covilhã.

Amanhã continuarei esta carta. Não posso continuar agora. Imagine que me estão a chamar para jantar. Já estamos de volta a Lisboa, aqui na rua de Santo Ambrósio. E a Maria da Luz e a mãe dela têm estado na cozinha com a Heloísa, a preparar uma chanfana. Vai ser um rico jantar! Que pena que não possa jantar connosco!

 

 

 

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