CARTA DE PARIS – Menezes Ferreira – tenente na Grande Guerra – V – por Manuela Degerine

carta de paris

João Menezes Ferreira, como Fernand Léger[1], Guillaume Apollinaire, Louis-Ferdinand Céline, descreve o “bellus horrendus” da guerra:

“O estranho cenário das trincheiras debruadas pela neve, os poentes sanguíneos riscando ao longe, lá para as bandas de Lille, um horizonte sujo; as granadas rebentando as crostas de neve, o clarão dos morteiros pesados, os efeitos do luar nestas complicadas comunicações subterrâneas e, nas noites escuras, os “very-lights”, fachos iluminantes, rebrilhando num feerismo de arraial minhoto, enchem de pasmo os soldadinhos”[2].

Não se encontram porém propriamente num arraial minhoto e suportam em cada bombardeamento uma violência de fim do mundo: “João Ninguém” deitando a cabeça de fora do abrigo dificilmente se convence que a terra continua no mesmo sítio ou que ainda existem homens sobre ela”[3].

Os soldados são em cada dia, em cada noite confrontados com a morte, têm-na aliás em permanência à frente na Terra de Ninguém: memento mori. Esta Terra de (João) Ninguém parece ser-lhes sinistramente prometida. “Aqui e além, empestando o ambiente, jazem cadáveres insepultos, despojados dos seus uniformes, apodrecidos em estranhas posições, os dedos enclavinhados, as faces negras e decompostas…”[4] Alguns destes cadáveres são corpos de camaradas que os soldados não podem ir buscar sem serem eles próprios abatidos; o respeito pelos mortos – que define o género humano – desapareceu no espaço selvagem da guerra. Menezes Ferreira denuncia esta degradação de João Ninguém a uma animalidade vil: “não tem outro remédio senão o de acamaradar com os ratos das trincheiras”[5].

(Uma praga evocada em numerosos textos, de Erich Maria Remarque[6], que é alemão, a Jean Giono, que é francês; o qual descreve o comportamento dos roedores quando devoram cadáveres. “Escolhiam em primeiro lugar os jovens imberbes. Cheiravam-lhes a cara, depois enrolavam-se e petiscavam a carne entre o nariz e a boca, a seguir o bordo dos lábios e por fim a maçã verde do rosto.”[7] Para além dos ratos, que mordem os soldados adormecidos, há as moscas, a pulgas, os piolhos, as melgas, os percevejos, bicharia que Menezes Ferreira não achou decente convidar para um texto destinado em primeiro lugar às mães e crianças das classes privilegiadas, porquanto as outras não compravam livros, não tinham hábitos de leitura e mesmo muito poucas sabiam então ler.)

No início do século XX os portugueses deslocavam-se a pé maioritariamente, do que resultava (se excluirmos o serviço militar e as migrações dos mais pobres) o conhecimento dos dez quilómetros à volta da residência, no entanto o narrador sublinha que, até chegar às primeiras linhas, João Ninguém sem dificuldade se adapta às mudanças de espaço, língua e cultura. Em seguida não há adaptação possível. Dificilmente podemos imaginar o que tal violência representou para estes jovens mas terem-na ultrapassado sem loucura nem suicídio basta para hoje os considerarmos heróis incontestáveis.

(Continua)

[1]Na correspondência de guerra (carta a Poughon), citado por Laurence GRAFFIN, “Carnets de guerre, 1914-1918, André Mare”, ed. Herscher, 1996.
[2] MENEZES FERREIRA, “João Ninguém – soldado na Grande Guerra”, 2ª edição, ed. Folhas e Letras, Lisboa, 2003, p. 42.
[3] Idem, p. 44.
[4] Idem, p. 55.
[5] Idem, p. 45.
[6] REMARQUE, Erich Maria, “A l’ouest rien de nouveau”, ed. Stock, Paris, 1929, pp. 109-111.
[7] GIONO, Jean, “Le Grand Troupeau”, “Oeuvres Romanesques Complètes”, vol. I, Bibliothèque de la Pléiade, NRF, ed. Gallimard, Paris, 1971, p. 620; tradução minha.

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