CONTOS & CRÓNICAS – MAURÍCIO VILAR SENTE-SE CONFORTADO, MAS APANHADO – por João Machado

contos2 (2)

Peço-lhe desculpa de ter interrompido a última carta, em que lhe contava como decorreu, aqui em minha casa, o serão de ontem, sábado. É que a minha mãe chamou-me para irmos almoçar. Comemos o restodo frango com espaguete que ela tinha arranjado com todo o esmero para o jantar. Estava realmente muito bom. Acabei o vinho que a Maria da Luz nos trouxe. Senti-me, acredite, bastante confortado. E a seguir fomos ao café. Ultimamente, com tanto trabalho, tenho ido lá pouco. Mas hoje até foi curioso. Estivemos com a D. Gertrudes Acabadinho, que exigiu que a Heloísa lhe contasse, de modo exaustivo, o episódio da véspera da telenovela, A Sombra do Rival (espero estar a dizer-lhe bem o nome), que já lhe mencionei na outra carta. A nossa vizinha explicou que não tinha podido vê-lo, por ter ido aos anos de uma sobrinha, que mora em Odivelas, e ter de ficar por lá até depois da meia noite, quando a vieram trazer a casa de automóvel. A sobrinha e o marido, uns encantos, garantiu-nos a Gertrudes Acabadinho. Mas conseguiríamos nós acreditar que lá em casa da sobrinha, tão encantadora, tanto ela como o marido uns primores, não vêem a telenovela? Um espanto. A minha mãe olhava para ela com um ar compungido. Eu garanto-lhe que não abri a boca. A nossa amiga ficou tão contente que nos pagou os cafés, os duchesses e até teimou em que eu bebesse um whiskizinho. Ela, por seu lado, bebeu um cálice de Porto. O Serafim, lá do balcão, mirava-nos de olhos arregalados.

Deixe-me entretanto contar-lhe o seguinte, em continuação do que lhe disse na primeira carta. Ontem, depois da telenovela, ainda fui levar a Luzinha a casa dela. Sabe, não me atrevo a seguir a sua sugestão de a convidar a dormir cá em casa. Não sei qual seria a reacção da minha mãe, e ainda menos a da Maria da Luz. Seria realmente mais prático, para usar a sua expressão, mas não sei… Imagine que algum vizinho dá por isso? Nem falo do que poderia acontecer se a Maria Antónia nos viesse bater à porta, por algum motivo. Ou se as duas se cruzassem na escada. Já sei o que vai dizer, que o mais provável é que não acontecesse nada. Como é que eu posso ter a certeza disso? Acredite, não estou a arranjar desculpas.

De modo que lá fui levar a minha amiga a casa.Tomámos o metropolitano, já seriam umas onze da noite. Sucede que, quando chegámos, ela insistiu em que eu entrasse. E, está a ver, demorei-me por lá, em circunstâncias expectáveis tendo em contaa situação. Não me pergunte onde fui buscar uma frase assim, como se diz, tão rebuscada. O facto é que, resumindo, quando demos pelas horas, passava das três da manhã. Já não havia metro, e eu teria que vir a pé para casa. Iria levar mais de uma hora, mesmo a andar bem. E sabe como as noites têm estado frias…

– Dormes comigo! –insistiu a Maria da Luz, sempre com um ar muito risonho. Eu explicava-lhe que estava preocupado com a Heloísa.

Acabei mesmopor dormir em casa dela.Fiquei no sofá da sala, porque a cama dela é bastante estreita,de solteira. Aliás, não lhe vou esconder a verdade, ficámos ali os dois, porque o sofá abre-se, e assim estivemos os dois confortavelmente. Pois claro, dormimos muito pouco… Ela foi-me explicando que os pais dela raras vezes vêm a Lisboa, mas quando acontece ficam sempre em casa dela, e dormem ali no sofá. Enfim, foi uma noite muito interessante. Muito mais do que se tivéssemos ficado na rua de Santo Ambrósio. O pior foi levantar-me às sete da manhã, para ver se chegava a casa antes da Heloísa acordar. A Maria da Luz ainda me forçou a tomar café e comer uma torrada. Mas fiquei aliviado, quando meti à chave à porta, sem fazer ruído (já percebeu que tenho prática de o fazer), e a senti no quarto a ressonar, que ela ressona menos que a D. Henriqueta, mas ainda assim bastante audivelmente. Fui sossegadamente para a minha cama.

Mas quando voltávamos do café, a Heloísa enfiou o braço no meu, de modo muito raro nela, no que me diz respeito (fá-lo muito com a grande amiga dela, a nossa vizinha D. Henriqueta) e perguntou, muito suave:

– Dormiste bem, em casa da Maria da Luz?

Leave a Reply