BISCATES – A Fé – por Carlos de Matos Gomes

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A fé salva? Nada é menos seguro. Já é certo que a fé mata. A fé deve ser mesmo a maior causa de morte não natural ao longo da história da humanidade. A fé move montanhas? Nunca aconteceu, a não ser se forem as montanhas de assassinos que ao longo dos séculos se têm movido pelos continentes e a quem umas vezes chamamos invasores e outras descobridores. Mas move facas e espadas de decapitar.

Estava a ler as notícias dos jornais e as desta manhã são as mesmas das de ontem e de há um mês e de há um ano e de há mil anos. Havia notícias de mortes pela fé na Tunísia, no Paquistão, na Nigéria, nos territórios que antigamente foram a Palestina, no Irão, no Iraque, na Síria, na Arábia, no Iémen, que também já tiveram outros nomes, e até foram chamados berço da civilização! A mais extravagante, já nem ouso utilizar a palavra chocante, vinha da Síria, ou daquelas zonas, na parte que se chama agora do Califado, ou do Estado Islâmico. O título do Expresso era: «Cachorros do Califado». Menores decapitam nove xiitas em nome do Estado Islâmico. Crianças recrutadas pelo autoproclamado Estado Islâmico decapitaram nove muçulmanos xiitas na Síria. Estas execuções fazem parte de uma estratégia do movimento jiadista, que recruta menores, apelidados de «cachorros do Califado». No vídeo vê-se uma criança a distribuir facas pelasrestantes, que acabariam por decapitar os nove homens.

Os cristãos encontram-se nesta época também a celebrar um momento religioso central da sua fé: uma crucificação. Seguida de ressurreição, claro, a fé tem sempre dois gumes: Um mata, o outro não se sabe se serve para alguma coisa para além de segurar o que mata. Mas os mortos pela fé ressuscitam depois de decapitados, de crucificados, de lapidados, de empalados, essa é a fé de todos os que matam e morrem. De certeza, sabe-se que a fé mata. Não há outra garantia, a não ser a da fé, que os mortos ressuscitem. E, menos ainda, que alguém ressuscite para um mundo onde não exista uma fé que volte a matar.

Aos fins de semana leio habitualmente o suplemento cultural do El País. Esta semana apanhei um ilustre confrade nas dúvidas quanto às boas qualidades da fé. Chamou-se José Luis Sampedro, nascido em Barcelona em 1917. Foi catedrático de economia na Universidade Complutense e Prémio Nacional das Letras, de Espanha. Um humanista, que durante a vida defendeu que o ser humano é multidimensional, que temos o dever de explorar todas as nossas potencialidades e de construir uma sociedade que permita que isso aconteça. Um herege neste mundo em que a sociedade neoliberal está em confronto com os fanáticos religiosos. Um negócio de milhões. Para José Luis   Sampedro, de que vai ser publicada em Espanha uma recolha de textos com o título A vida perene, a vida dos homens explora caminhos que escapam à razão e não é fácil escapar à crua realidade do mundo. Para ele temos um problema com a fé e com o progresso. Temos um problema em como escapar de uma e do outro, concluo eu, que já ouvi soldados em apertos garantirem-me, em jeito de oração: a sorte de um homem é escapar!

Do progresso falarei daqui a uns tempos, quando publicar o próximo romance. Quanto à fé, acompanho José Luis Sampedro: «Qualquer fé é uma forma de cegueira. Quando dizemos: A fé é acreditar no que não vemos, nesse mesmo instante a fé impede-nos de ver o que vemos». Para terminar, José Luis Sampedro disse pouco antes de morrer: «Nunca tive a sensação de uma alma imortal. Não necessito dela, nem me interessa».

Se convencessem disto os jiadistas de todas as religiões eu era capaz de ter fé na humanidade.

Carlos de Matos Gomes

 

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