A NOSSA RÁDIO – EVOCANDO O PROGRAMA EM ÓRBITA – 3 – por Àlvaro José Ferreira

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Elenco do “Em Órbita” em 1968 (da esquerda para a direita): Pedro Albergaria, Cândido Mota, Jorge Gil e João Manuel Alexandre

O combate de Jorge Gil, que ficara sozinho à frente do programa, começou pouco a pouco a surtir efeito. Os níveis de audiência começaram de novo a subir (no início da década de 80 eram já dos mais altos da rádio portuguesa) e a consequência mais evidente deste fenómeno que se foi verificando foi uma procura crescente de gravações de música antiga no mercado discográfico nacional. A partir de 1985, o “Em Órbita” passou a promover concertos de música antiga. Começou com a Orquestra Barroca de Amsterdão, dirigida por Ton Koopman, para celebrar os tricentenários de Bach e Händel, e prosseguiu com produções tão importantes como a primeira audição moderna de “La Guerra de los Gigantes” de Sebastian Duron, pelo Hesperion XX, o “Tristão e Isolda” medieval pela Boston Camerata, os concertos de música de câmara de Jordi Savall, Ton Koopman e do Musica Antiqua de Colónia ou a apresentação monumental das “Vésperas” de Monteverdi dirigidas por Savall, poucos dias antes da sua gravação num dos álbuns mais unanimemente aclamados da discografia europeia dos últimos anos.

O “Em Órbita”, que soube sempre ir à frente e desbravar caminhos novos na vida musical portuguesa, deveria ser hoje, após vinte e cinco anos de provas excelentes, uma realidade sólida, acreditada e disputada pelos grupos económicos deste país como interlocutor privilegiado para as suas iniciativas de mecenato cultural. (Rui Vieira Nery, in jornal “Expresso”, 1990; livro “Telefonia”, de Matos Maia, Lisboa: Círculo de Leitores, 1994 – retirado do blogue “Rádio Crítica”) As palavras de Rui Viera Nery seriam ouvidas, ainda que algo tardiamente, pois a Portugal Telecom viria a patrocinar algumas temporadas de concertos (de 1997 a 2003). Na Rádio Comercial, o “Em Órbita” terminou em 1993, pois na sequência da privatização, os novos donos entenderam (tacanhamente, diga-se de passagem) que já não havia lugar para ele. Recomeçou, em 1994, no ressurgido Rádio Clube Português (na frequência que fora da Rádiogeste), com locução de Cândido Mota, mas apenas se manteve no ar durante seis meses.

A 3 de Abril de 1998, sexta-feira, às 23:00, o programa voltaria às ondas hertzianas, desta vez na Antena 2, para duas horas de emissão semanais, preenchidas com a fascinante música antiga, devidamente enquadrada com textos lidos por Paulo Rato. Ter encontrado, finalmente, uma nova guarida para o “Em Órbita”, quando o panorama radiofónico em Portugal já se revelava assaz deprimente, foi motivo de regozijo para Jorge Gil. Para ele – acrescente-se – e para todos aqueles (que não eram poucos) que se sentiam órfãos com a sua ausência. Há dias festivos que merecem aplauso da praça pública numa cerimónia qualquer. A passagem de 33 anos sobre a primeira emissão do “Em Órbita” podia ser um deles, mas não interessa celebrar com serpentina cinzenta, guloseima e rugido de foguete em fogo-de-artifício precário, as vicissitudes dum projecto cultural acidentado que, sabe Deus como, sobreviveu até hoje.

Em Portugal, o “Em Órbita” foi pioneiro na divulgação do trabalho dos intérpretes que melhor têm protagonizado o movimento de redescoberta e reavaliação do património musical europeu anterior ao advento do Romantismo, que permaneceu em jazida desleixada até meados do século XX. Com transferência marcada para 3 de Abril, o “Em Órbita” passa a ser transmitido na Antena 2 da RDP. Num tempo em que o nivelamento canalha ganhou estatuto triunfante, é um remédio saber da existência de lugares onde não há morada para os difusores de um vírus sem nome próprio, no qual germina a vaga e perigosa luxúria da distracção. (Jorge Gil, in boletim de programação da Antena 2, Abril de 1998) Infelizmente, volvidos três anos, Jorge Gil daria por finda a realização do “Órbita”, indo para o ar, a 30 de Março de 2001, a última edição original. Por decisão de João Pereira Bastos, director de programas da Antena 2, o programa passaria a regime de reposição, o que aconteceu até 29 de Junho do mesmo ano. Desapareceu então do éter mas não sem deixar muitas saudades. No meu caso, tomei contacto com ele em finais dos anos 80 e logo me conquistou. Ficava literalmente imobilizado diante do aparelho a sorver, verdadeiramente deliciado, aquela maravilhosa nova música antiga, à qual a Antena 2 ainda permanecia indiferente. Convém lembrar que, por esses tempos, a rádio pública transmitia pouquíssima música anterior ao classicismo. Bach, Haendel e Vivaldi, nas esporádicas vezes em que apareciam, era invariavelmente em gravações “romantizadas”, não raras vezes bem pouco aliciantes.

A milhas de distância, portanto, das cativantes e sedutoras interpretações segundo os preceitos estético-estilísticos de abordar a música barroca e pré-barroca, que começaram a afirmar-se nos anos 60, com Nikolaus Harnoncourt, Gustav Leonhardt, Frans Brüggen, Alfred Deller, Anner Bylsma, os irmãos Kuijken, Jordi Savall, Hopkinson Smith e outros. São muitas as obras e interpretações cuja descoberta devo a Jorge Gil, e entre elas há duas que sempre que as ouço me fazem evocar de imediato o “Em Órbita”. Uma é o concerto para duas charamelas, cordas e baixo contínuo, em ré menor, de Telemann, pela Musica Antiqua de Colónia, sob a direcção de Reinhard Goebel. A outra é a marcha da “Música para o Funeral da Rainha Mary”, de Henry Purcell, na leitura de John Eliot Gardiner à frente da Monteverdi Orchestra e do Equale Brass Ensemble. A melodia da segunda nem era estranha aos meus ouvidos pois havia-a escutado, em versão electrónica, no filme “Laranja Mecânica” [>> YouTube] mas a interpretação, historicamente informada, de John Eliot Gardiner teve o sortilégio de me tocar de modo tão profundo e impressivo que deixou marca indelével no meu espírito.

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