CARTA DO RIO – 47 por Rachel Gutiérrez

riojaneiro2Com a manchete  La Voz de nuestro Tiempo, um jornal de Montevidéu deu a triste notícia ao mundo, no dia 13 de abril: Eduardo Galeano também nos deixou. Visivelmente comovido, no dia seguinte Carlos Loures escreveu um belíssimo editorial para a nossa Viagem dos Argonautas: “Porque escrevemos? Eduardo Galeano, o grande humanista e escritor uruguaio que ontem morreu, fazia esta pergunta e respondia que escrevemos devido à necessidade de comunicação e de comunhão com os outros, ‘para denunciar o que dói e partilhar o que dá alegria. Escrevemos contra a própria solidão e contra a solidão dos outros. ’ Acrescentamos – escrevemos contra a morte. A morte que ontem nos roubou Eduardo Galeano. (…)”

galeano

Tive a curiosidade de procurar, então, o que Galeano havia escolhido para o dia 13 de abril, em um de seus livros que mais aprecio – LOS HIJOS DE LOS DÍAS, que percorre todos os dias do ano, conta histórias e cria uma outra História, graças à originalidade desse arqueólogo do humano, desse pesquisador incansável que  sonhava com um mundo que fosse “a casa de todos e não a casa de uns poucos e o inferno de muitos.” E o verbete, que tem como  título No supimos verte, começa assim: (Abril 13) En el año 2009, en el átrio del convento de Maní de Yucatán, cuarenta y dos frailes franciscanos cumplieron una ceremonia de desagravío a la cultura indígena: (…)

Assim, cada página desse livro extraordinário nos faz revelações de fatos e acontecimentos que a História escrita pelos brancos do Ocidente costuma ignorar. Inspiradora é a própria epígrafe do livro, que reproduz um trecho do Gênese segundo os maias:

      Y los dias se echaron a caminar.

      Y ellos, los dias, nos hicieron.

      Y así fuimos nacidos nosotros,

      los hijos de los dias,

      los averiguadores,

      los buscadores de la vida.

 

Para Galeano, o exercício da solidariedade consistia ao mesmo tempo num exercício de humildade porque implicava em ver e ouvir o Outro, todos os outros e a narrativa de suas vidas. Defensor dos índios, dos negros, das crianças e dos velhos, das mulheres, da Natureza e dos animais, o escritor andarilho, que amava profundamente a sua cidade, Montevidéu, sofreu o exílio e fez amigos no mundo inteiro. Quis virar o mundo de cabeça para baixo a fim de que se aprendesse a valorizar as coisas pequenas, os seres humildes e injustiçados, os desamparados e os inseguros. Por isso sua relação com os jovens foi tão especial: nada paternalista, era capaz de estabelecer com eles uma comovedora cumplicidade, que provocava a mais entusiástica admiração. Em entrevista, Eric Nepomuceno, o seu tradutor e grande amigo brasileiro, revelou que ao sair com ele em Buenos Aires precisou armar-se de muita paciência para aguentar o assédio dos fãs, principalmente jovens, que lhe pediam autógrafos, opiniões e também abraços. Sabe-se, porém, que aquela personalidade magnética e a simpatia do ativista internacionalmente famoso escondiam o estudioso, o pesquisador, o escritor capaz de trabalhar até 18 horas por dia. Galeano mesmo contou num vídeo, que o Youtube conserva, que seu cão e grande companheiro de caminhadas chegava muitas vezes a puxar-lhe a mão do teclado para que finalmente parasse e pudessem ambos passear.

Esse cão muito querido, chamado Morgan, um dia morreu e deixou o escritor profundamente deprimido. Tempos depois, numa manhã ensolarada, saindo triste para caminhar sozinho, eis que uma criança o fez voltar a sorrir. Era uma menininha de talvez pouco mais de dois anos que, brincando entre flores, dizia alto para as folhas do capim: “Bom Dia pastinho, Bom Dia pastinho!” Galeano observou: “as crianças são maravilhosas, são todas pagãs, e são todas poetas, nós é que as estragamos depois.”

Tanto a fala quanto a escrita do grande uruguaio aproxima-se sempre do poético. Eric Nepomuceno elogia: “ em primeiro lugar, a precisão do ofício da palavra. Tudo na prosa de Eduardo é exato, a palavra no osso. Em segundo lugar, a forma como ele conseguiu ter um olhar ao mesmo tempo amplo e tão detalhista sobre o mundo.” Como também observou um jornalista argentino,  Galeano tinha “um olho fixo no microscópio, e o outro, no telescópio.”

Podemos dizer que foi um filósofo, não um filósofo acadêmico nem um professor de filosofia, nem um criador de sistema, mas um filósofo na acepção mais pura, diríamos natural, a do verdadeiro amante do saber e da vida, a do questionador cuidadoso, do eterno aprendiz e amigo da sabedoria, autêntica expressão da etimologia dessa palavra ressoante.  Foi capaz de denunciar as nossas contradições mais dolorosas, como por exemplo, quando lembrou que os dois homens mais justos, Sócrates e Jesus, foram condenados pela justiça. Mas é ao incansável defensor da equivalência de velhos e moços, de sábios e pessoas simples, de animais e seres humanos, de homens e mulheres que lhe sou mais grata.

Em Los hijos de los dias, Eduardo Galeano, o autor de mais de 40 livros de ficção, de História e de análise política, lembrou a primeira poeta da humanidade, Enheduana,

      “a primeira escritora, a primeira mulher que assinou suas palavras,

      e foi também a primeira mulher que ditou leis,

      e foi astrônoma, sábia das estrelas,

      e sofreu pena de exílio,

      e escrevendo cantou a deusa Inanna, a lua, sua protetora, e celebrou a felicidade de escrever que é uma festa,

      como parir,

      dar nascimento,

     conceber o mundo. ”

É provável que estejam juntos, e conversando, agora.

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