A GALIZA COMO TAREFA – Sebos – Ernesto V. Souza

24hrs1O presente resulta de um acúmulo de circunstâncias e processos, alguns são consequências numa corrente de causas, outros são respostas a atos e sucessos diversos e outros simples ricochetes entrecruzados. Acaso, azar, consequência, a complexidade do presente é muitas vezes mais devida à quantidade de fatores e processos que nele interagem que à perícia, método e capacidade do observador.

Anos como visitante, comprador ou simples curioso de livros em sebos e lojas em segunda mão têm-me feito constatar para além da lógica implacável da oferta e a procura em raios de circunferência determinados, que o conhecimento dos produtos, a informação e a procura longe dos epicentros é sempre vantagem ou um extra para o negócio.

Mas sem falarmos em vendas, as próprias livrarias são sempre narrativas múltiplas para além do conto dos livreiros: livros por peso, livros baratos, oportunidades, descatalogados, livros rotos e gastos, usados, raras edições, coleções, séries, livros vendidos pelas ilustrações, o formato, a encadernação ou a ostentosa antiguidade. Todos têm uma história particular de edição, de vida, de diversos proprietários, do carinho ou desinteresse com que foram tratados, da habilidade do artesão que os encadernou, ou mesmo de onde estiveram por anos colocados ou abandonados, estabelecem relações temáticas, autoriais, epocais e de afinidades ou cultura entre proprietários.

Podemos deduzir deles um contexto por vezes até evidente, das circunstâncias económicas e sociais em que apareceram, em que foram impressos, em que se compraram, encadernaram, e em que voltaram às lojas para ser de novo topados e vendidos.

Os alfarrabistas, como as lojas de antiquário, e todo o mercado de compra e venda em segunda mão, não refletem apenas as crises económicas, pontuais e como anéis, do capitalismo, destacam, também em espaços e marcando classe, as modas, e muitas vezes o pulso cultural de diversas camadas das fases anteriores de um país.

Visitar essas tendas e topar livros baratos e variados, hoje, populares ou exclusivos, ontem de 25, 50 ou mais anos, bem encadernados, anotados, assinados, de temáticas diversas, tratados filosóficos, ciência, arte, música, especialmente partituras e livros de literatura noutros idiomas dos do país revelam muita cousa.

Para entender o presente é fundamental também escavar um pouco, como pequenos arqueólogos, o passado imediato ou o presente afastado. Os naufrágios das pequenas e grandes livrarias particulares podem evidenciar o que as grandes bibliotecas constituídas segundo ordens e regras governativas não fazem.

Sabendo o que houve, vendo o que há e o que deveria haver, dá para ver, não poucas vezes em contradição com as histórias e os manuais, o que um país celebrou ou ignorou, o que achou um dia luxo e o que foi popular, o que se purgou numa fase e o que se permitiu por décadas, modelando parte da cultura: os livros como objetos, como instrumentos de uso cultural.

Buenos Aires, Bruxelas, Porto Alegre, Coimbra, Montevideu, a Havana, Nova Iorque, Londres, Paris, Barcelona, Porto, Lisboa, contam muita cousa ao irmos com os olhos percorrendo, com pressa ou vagar as montras, prateleiras, pilhas e caixotes. Os mercados de rua ou pátio também. Mais que os catálogos e a internet, é a abundância e variedade observada em liberdade que fala doutros tempos e mercados.

A contrário: a ausência de livros franceses e alemães, de velhos livros técnicos e ingleses mais próximos; o elevado preço e escassez, das outrora edições populares, das grandes tiragens de literatura de avançada republicana, nas livrarias espanholas diz muito. Quase tanto como a pouca oferta de velhos livros portugueses, de qualquer época anterior à internet, nas da Galiza.

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