EDITORIAL – A disfunção eréctil da Democracia

logo editorialEsperam todas as manhãs dos dias laborais em longas filas de trânsito para  poderem chegar aos locais de trabalho, o mesmo acontecendo quando, ao fim do dia, regressam a suas casas; por uma promoção num supermercado, formam bichas, esperam horas para beneficiar de um desconto que não paga o tempo gasto; são capazes de acampar e dormir noites seguidas junto das bilheteiras de um pavilhão ou de um estádio para garantirem o ingresso num qualquer festival de música; esperam ordeiramente a sua vez de entrar na grande superfície onde vai ser posta à venda a mais recente versão da play station. Mas quando há eleições, uma grande percentagem de cidadãos eleitores prefere ir para a praia ou ficar em casa a ir à assembleia de voto decidir o destino colectivo. É a disfunção eréctil do sistema de democracia directa.

Deixem a política para os políticos», disse numa infeliz alocução durante o 10º aniversário da Revolução de Abril, Tito de Morais, um “histórico” do Partido Socialista. Porque é isso mesmo que os eleitores, principais agentes do sistema fazem. Muitos dos que não votam, queixam-se de executivos que atingem o poder com a cumplicidade dos abstencionistas. E vemos depois políticos como Paulo Portas que, tendo obtido os votos de uma percentagem ridícula do universo eleitoral, vice-primeiro-ministro de um governo incompetente, falar na “legitimidade democrática” das suas decisões. É um jogo de «faz de conta».

A ideia de usar as massas, de actuar em seu nome, não é nova. Fernão Lopes descreve-nos com o vigor da sua prosa como, num dia de Dezembro de 1383, o Mestre d e Avis e o seu partido, liderado por Álvaro Pais, um burguês – «homem honrado e de boa fazenda» – após terem morto o Andeiro, tentaram manipular o povo de Lisboa: «Os outros quiseram-lhe dar mais feridas, e o Mestre disse que estivessem que dos e nenhum foi ousado de lhe mais dar. E mandou logo Fernando Álvares e Lourenço Martins que fizessem cerrar as portas que não entrasse nenhum, e disseram ao seu pajem que fosse à pressa pela cidade bradando que matavam o Mestre, e eles fizeram-no assim.» Como se vê, o papel distribuído aos mesteirais e arraia-miúda na conjura foi o de comparsas, o de figurantes. Sabia-se que a multidão, supondo o Mestre em perigo, acorreria ao paço, impedindo que sobre ele se exercessem represálias pela morte do conde de Andeiro. (Se fosse hoje, o Mestre esperaria pela hora dos jornais televisivos para fazer a comunicação). Assim aconteceu, o povo acorreu de todos os lados, ameaçou incendiar as portas e só se aquietou quando D. João surgiu a uma janela, agradecendo as delirantes aclamações da multidão e pedindo aos populares que regressassem a suas casas, pois «não havia deles mais mister», ou seja, cumprido o seu papel, podiam abandonar a cena. Foi a partir daqui que o plano tão bem urdido por Álvaro Pais falhou – a população amotinou-se, linchou o bispo de Lisboa que, recusando-se a mandar tocar a rebate os sinos da Sé, foi considerado implicado na suposta conspiração contra a vida do Mestre. A insurreição alastrou e dificilmente se conseguiu evitar o assalto às casas dos judeus e dos ricos da cidade. Como um grande incêndio começado por uma brincadeira com fósforos, a intriga palaciana deu lugar a uma Revolução difícil de controlar.

O sistema dito democrático em que vivemos, transformou-se numa ditadura de políticos que invocam a vontade popular para prosseguir o seu jogo – negócios, nepotismo, empregos para os amigos… a corrupção em todo o seu esplendor. Mas… «cuidado, pois pode o povo querer um mundo novo a sério»

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