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Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
Síria: Esquecer Palmira?
A “comunidade internacional” não sabe sobre que pé deve dançar
Daoud Boughezala, Syrie: Oublier Palmyre? La “communauté internationale” ne sait pas sur quel pied danser
Revista Causeur.fr, 21 de Maio de 2015
(Com AFP). A organização Estado islâmico (I.E.) apropriou-se da totalidade da cidade antiga Palmira no deserto sírio, suscitando temores de vermos os tesouros arqueológicos da cidade destruídos pelos djihadistas. Com a tomada deste oásis que abre sobre o grande deserto sírio transfronteiriço do Iraque, o I.E. passa agora a dominar sobre metade do território da Síria. Na semana último, nas aldeias onde o exército legalista se tinha retirado para a orla de Plamira, o E.I. executou 26 civis, 10 dos quais por decapitação, “por colaboração com o regime”. Entre os djihadistas mortos em combate, figura Abou Malek Anas al-Nachwan, um líder da ofensiva contra Palmira, que tinha aparecido sobre uma vídeo do I.E. onde se mostra a decapitação de 28 Etíopes na Líbia, de acordo com sítios islamistas.
Pouco antes da tomada de Palmira pelo E.I., a directora -geral da UNESCO Irina Bokova tinha apelado a uma paragem imediata dos combates para que se tentasse proteger esta jóia arqueológica. Pode-se encontrar aqui uma ponta de ingenuidade neste piedoso desejo. Recordemos que na Síria, os djihadistas já destruíram dois magníficos leões sírios em Raqa, cidade de que o E.I. fez a sua capital, e cometeram destruições e permitiram escavações clandestinas, às vezes a buldozer , sobre os sítios de Mar, de Doura Europos, de Apamée, de Ajaja (nordeste), e de Hamam Turkoman perto de Raqa, sobre o Eufrates. Sem estar a falar dos vestígios de Nemrod ou das peças sírias de Mossul no Iraque, reduzidos como neve ao sol do deserto. Os salafistas consideram estas obras como ímpias porque procedentes da era pré-islâmica, o mesmo é dizer, do tempo “da ignorância” (Jahiliyya). A sede de ouro negro do grupo terrorista não encontra mais nenhum obstáculo sobre a sua passagem, o Daech conquistou já os últimos campos petrolíferos e do gás que Damasco ainda controlava. Doravante, o conjunto dos recursos petrolíferos do país estão nas mãos do Estado islâmico, com excepção de alguns jazigos explorados pelos autonomistas curdos do Rojava, nos confins orientais da Síria, e um campo administrado pelo regime em redor de Homs.
A tomada de Palmira assume uma enorme carga simbólica. Não somente porque o sítio arqueológico parece inelutavelmente sujeito à destruição e à pilhagem, mas também porque esta conquista de uma cidade que os “rebeldes” tinham controlado desde Fevereiro até Setembro de 2013 antes desta ser retomada pelo regime, abre a via para caminharem sobre Damasco. Alguns tinham interpretado a ofensiva de Daech sobre Palmira como uma simples astúcia que esconde o verdadeiro objectivo estratégico da organização islamista: Ramadi. Ora, é-se obrigado a confirmar que os djihadistas foram bem sucedidos em duas conquistas simultâneas, no Iraque e na Síria, de forma a estender a sua influência sobre o Levante (bilad ach-cham), de acordo com os desejos do seu “califa” Al-Baghdadi.
Face a este rolo compressor, “a comunidade internacional” parece desarmada, tanto no sentido figurado como no sentido estrito do termo. Galvanizados pelos bombardeamentos americanos diários, (que não igualizam contudo a força de destruição desencadeada contra Saddam Hussein em 1991!), apesar dos duros golpes aplicados à sua direcção e apesar da sua barbárie de rosto inumano, o Estado islâmico continua a granjear apoios entre as populações que governa. Assim, o anúncio da libertação dos prisioneiros da prisão de Palmira – tristemente celebre pelos seus motins e maus tratamentos várias vezes repetidos – faz-lhe marcar alguns pontos políticos suplementares contra o poder de Bachar Al-Assad, que vai de recuos em desaires.
Sem a ajuda massiva do Hezbollah e do Irão, Damasco já teria caído. De resto é apenas na zona transfronteiriça do Qalamoun, maciço montanhoso que a milícia chiita conhece muito bem por ter aí feito a sua base na retaguarda , que a oposição islamista morde ainda a pó da estrada . Em frente do cenário catastrófico de uma queda precipitada da Síria, do jugo de Assad aos sabres “do califado”, os Ocidentais já não sabem sobre que pé se apoiarem. Cada avanço do E.I. traduz-se por uma purificação étnica, religiosa e política sangrenta (alauitas, druzes, cristãos, yézidis ou mesmo sunitas passados ao fio da espada sabem alguma coisa…), um brusco desmoronamento da ordem baathista promete um cenário do tipo da Líbia mas ainda … pior. É necessário ganharmos consciência: nos países sem verdadeiro Estado-nação nem cultura do pluralismo, o advento “da democracia” transforma-se na ditadura da maioria, se não num banho de sangue.
Os nossos dirigentes políticos poderão chorar todas as lágrimas possíveis sobre a areia quente de Palmira . A sua incapacidade em compreender a complexidade do problema sírio amarra-os ao seu maniqueísmo . As suas mãos “limpas” – se tivermos em conta o comportamento ocidental relativamente condescendente face à Al-Qaeda síria (Frente Al-Nosra) não vão para além do pulso. Em vez das posições disparatadas do pobre Fabius de apoio a Bush, teria preferido ouvir e entender estas palavras carregadas de bom senso :
“ Vim à Síria, observei que mesmo os que, na população de Damasco, não gostam de Assad temem os que se batem no norte do país. Sei igualmente que uma grande parte do povo sírio reclama a partida do presidente sírio. Há uma grande divisão no país sobre o futuro do poder na Síria. A condição indispensável para se chegar um acordo sobre a Síria é que as forças do extremismo islâmico, como Front Al-Nosra e Daech, não participem no poder na Síria.”
Esta declaração emana do conselheiro para as questões do Médio-Oriente do chefe da diplomacia russa Sergueï Lavrov. Palavras pronunciadas à margem de um encontro entre o ministro e o antigo chefe do governo libanês Saad Hariri, acérrimo defensor da política da Arábia Saudita, ferozmente anti sírio. Horror, desgraça: Moscovo fala aos seus adversários! Uma tal estratégia bem conhecida à partida tem como nome realpolitik, esta noção sempre conveniente para o que der e vier em nome da qual Paris justifica a venda dos Rafale aos nossos “amigos” do Quatar …
Daoud Boughezala, Revista Causeur, Syrie: Oublier Palmyre? La “communauté internationale” ne sait pas sur quel pied danser. Texto disponível em :
http://www.causeur.fr/syrie-palmyre-daech-assad-32850.html