Para um blogue que, como o nosso, decidiu à partida não se ocupar com o futebol, considerando a torrente de paixão irracional que provoca até mesmo em criaturas de privilegiada capacidade, temos ultimamente dedicado muito espaço não propriamente à modalidade desportiva, mas aos seus reflexos numa importante parte do mundo actual. Como uma estação de tratamento de resíduos, os detritos sociais de uma aldeia global eivada de contradições, passam por um jogo que, em princípio, devia apenas ser jogado num rectângulo de relva por 22 jogadores que disputassem a posse de bola e nessa competição de perícia, fruíssem o saudável prazer do desporto e proporcionassem a quem assistia um espectáculo bonito e emocionante. Nós não alterámos a nossa postura ante o fenómeno futebolístico – será o «desporto-rei», mas nós, sendo anti-monárquicos, não respeitamos realezas.
Porém, se a em Portugal polícia dita de Segurança Pública, espanca repetidamente espectadores do futebol, se energúmenos de claques futebolísticas provocam estragos no mobiliário urbano de cidades, obrigando o erário público a pagar os desmandos da sua fúria de marginais, inadaptados, bipolares, ou como queiram designar esses bandos de primatas inferiores; se, aninhado em Zurique, um bando. agora já não de anormais, pois as designações depreciativas são reservadas às hordas que os bairros degradados vomitam sobre as áreas «civilizadas» das urbes, dizíamos se um bando, mas talvez seja melhor rectificar – se um escol de empreendedores, se apropria de milhares de milhões de euros resultantes do grande negócio em que o tal jogo se transformou; se em Moscovo a figura máxima de um dos impérios em que o mundo está dividido vem desenvolver uma teoria da conspiração, acusando o outro império de ter inventado o roubo – perdão! – a apropriação ilícita de muitos milhões só para desviar do seu território a realização de um campeonato mundial de futebol; se num estádio de Barcelona, mais de cem mil espectadores, catalães e bascos, abafam com assobios o hino do Estado espanhol, aquele a que Malraux chamou «uma marcha de carrossel», um hino criado pela fantasia de bandalhos fascistas, gente da proto-história das actuais claques, mas que democratas como Felipe Gonzalez aceitaram como símbolo de um “estado democrático”; se tudo isto acontece em torno de uma modalidade desportiva, como podemos nós ignorar o futebol?!
Não discutimos arbitragens, nem tácticas, não comentamos a inteligência, ou a falta dela, de treinadores e muito menos pormenores do «forno íntimo» dos clubes. Limitamo-nos a lamentar que um desporto bonito, quando bem jogado, se tenha convertido no epicentro de um sismo permanente, na boca de um vulcão que regurgita tudo o que de podre as entranhas da aldeiaglobal acumulam.
P,S. A assobiadela monumental em Camp nou, infligindo a Filipe VI uma humilhação pública, foi bonita; perguntamos – não deveriam catalães, bascos e galegos recusar-se a participar numa competição que se chama taça do rei… de Espanha?
Os credos, futebol e partidos têm uma logica de seita.