A GALIZA COMO TAREFA – parábola dos cegos – Ernesto V. Souza

Pieter Brueghel
Pieter Brueghel “A Parábola dos Cegos” 1568

Não por mais repetido é mais assumido que o processo de nacionalização da Espanha (o processo de converter o reino numa nação ou num estado-nação), que a tentativa que desde início do século XIX as suas elites protagonizam para a converter numa Nação, afetou a imagem e construção da língua comum da Galiza.

As fases diversas na construção do nacionalismo de Estado na Espanha podem se seguir nas reações e nas contra-reações, nos protestos, reivindicações e tentativas de construção da Língua galega e no da sua e paralela reivindicação como corpo, espaço e entidade política nacional.

O processo no século XIX, com o seu nacionalismo absolutista e liberal isabelino e Restauración canovista, com o seu sistema de partidos rotativistas à inglesa no topo e caciquis à siciliana na base, com as suas tentativas revolucionárias e breve hora republicana; foi continuado num século XX onde as ditaduras e a restauração monárquica, seguiram-se dum projeto de pato comum nacional, chamado de Transição que ordenou o Estado atual no eixo geral das Autonomias.

Concebido inicialmente em duas fases, o modelo desenhado para as nações históricas (Catalunha, Euzkadi, Galiza) terminou funcionando como um modelo departamental em desenvolvimento, para todo o Estado com descentralização de competências. O processo de normalização do estado autonómico fora desenhado também para enterrar e normalizar definitivamente o conflito linguístico nacional nas Comunidades com língua própria. Territórios onde a Autonomia política concedida desempenhava – no espaço normalizado e permitido- um papel paralelo ao dos dialetos e o folclore, um jeito de integrar e desativar as reivindicações nacionalistas perpassadas por profundos processos nacionalizadores desde o Estado.

Neste complexo processo normalizador e desativador promovido pelo Estado, o espaço mais profundamente afetado foi a Galiza, política, cultura e língua. O modelo linguístico catalão já fora fixado antes da Guerra civil, quanto ao Euskera pela sua entidade e limites a criação de um padrão era simplesmente questão interna. Independentemente do resultado dos processos e do sucesso das políticas linguísticas dos últimos 40 anos, trata-se de línguas minoritárias e minorizadas.

Mas, e na Galiza? não é pequeno o debate, como não é a decisão, entre vir a ser um dialeto ou variante no espaço linguístico do Português (ou galego-português) ou continuar a ser uma outra língua minoritária e específica da Espanha, reivindicável politicamente por um nacionalismo paralelo ao Catalão e Basco, mas também “convertível a dialeto” no imaginário e propaganda do nacionalismo espanhol. As formas de entender o conflito e a minorização e destruição programada pelo Estado são ainda diversas.

Os leitores portugueses ouvirão muito ao longe apenas os ecos confusos do tumulto, certamente pouco convidativos para se achegar. E mesmo para quem por anos tenha frequentado a Galiza e as suas “cousas”, será difícil perceber as correntes e posicionamentos tão particulares e divididos,  de confundidos com lealdades políticas, grupais e interesses, de interferidos pelos processos nacionalizadores do Estado e pelos projetos nacionalistas concorrentes como se apresentam.

Frutos de dinámicas históricas e políticas, que exigiam por parte do Estado a construção e normalização de um galego dialetalizado, como elemento mais, folclórico e colorido, no construto permitido estatal da grande nação; frutos de uma outra ideia nacional, nada a contra, reivindicativa mas também pragmática que tratava de aproveitar o processo de alfabetização maciça em castelhano, com o que o estado pretendia conformar os cidadãos; e frutos também de uma reivindicação histórica que questionava a narrativa do estado-nação lembrando que a Galiza, de Roma a hoje, foi potência, reino, território com reis, e língua comum com Portugal.

O Estado nos séculos XIX e XX consagrou na Galiza o que as elites galegas já fizeram: adotarem o castelhano, renunciado logo a fazer do galego uma (a sua) língua nacional. Mas se Paris, valia uma missa, Madrid bem valia uma língua.

Causa efeito, após efeito causa, e a história é longa, explica sem muitas complicações a conflituosa realidade atual em que várias fações ainda concorrem pela legitimidade ou pela perspectiva dominante no modelo. Mas pretendendo liderar o processo, e filhos da história e do nosso tempo político e social, não passamos ainda de cegos, guiados por cegos.

Castelão, Como na parábola de Pieter Brueghel (1941) Castelão, Como na parábola de Pieter Brueghel (1941)

 

 

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