Selecção, tradução e nota introdutória por Júlio Marques Mota
Nicole Weill, Le djihadisme, une forme moderne de réaction au déracinement, The Paris attack and his Aftermath
Le Monde, 21 de Novembro de 2015, Social Europe, 26 de Novembro
O presidente François Hollande quer definir “um estado de guerra” adaptado à situação. Que pensa desta discussão? Acredita que genericamente uma modificação da Constituição seja uma resposta adaptada aos atentados do 13 de Novembro?
Jürgen Habermas – Parece-me sensato adaptarem as duas disposições da Constituição francesa relativas ao estado de emergência à situação actual. Se esta questão está agora na ordem do dia é porque o presidente proclamou o estado de emergência na sequência dos acontecimentos chocantes que se verificaram na noite de 13 a 14 de Novembro, e entende prolongá-lo por mais três meses. Posso dificilmente julgar da necessidade desta política e das suas razões. Não sou de forma nenhuma um perito em questões de segurança mas, vista a questão à distância, esta decisão assemelha-se a um acto simbólico que permite ao governo reagir – provavelmente da maneira que convém – ao clima que reina no país. Na Alemanha, a retórica guerreira do presidente francês, guiada ao que parece por considerações de política interna, suscita sobretudo reservas.
O presidente Hollande também decidiu aumentar o seu nível de intervenção na Síria, nomeadamente bombardeando Rakka, “a capital” do Estado islâmico, e aproximando-se da Rússia. Que pensa do intervencionismo em geral?
Não se trata de uma decisão política inédita mas apenas a intensificação da actuação da aviação francesa, que está em acção desde há já um certo tempo. Certamente, os peritos mostram estarem de acordo para dizer que um fenómeno tão desconcertante como o é Estado islâmico – esta mistura “de califado” que não encontrou o seu território definitivo e de comandos de assassinos a surgirem em enxame à escala do globo – não pode ser vencido somente pelas armas aéreas.
Mas a intervenção no solo de tropas americanas e europeias não é não somente irrealista como seria sobretudo de uma grande imprudência. Não serve para nada estar a agir curto-circuitando os poderes locais. Obama já aprendeu com as intervenções dos seus antecessores e com os seus próprios falhanços e insistiu sobre um ponto importante aquando da última cimeira do G20 que se desenrolou há pouco na Turquia. Sublinhou que as tropas estrangeiras não podem garantir por muito muito tempo, após a sua retirada, o resultado dos seus sucessos militares.
Do resto, não se pode agarrar o Estado islâmico pela garganta recorrendo apenas aos meios militares. Os peritos mostram-se igualmente estarem de acordo sobre este ponto. Podemos considerar estes bárbaros como inimigos, e devemos lutar contra eles, incondicionalmente; mas, se quisermos vencer esta crueldade sobre o longo prazo, não devemos enganar-se quanto às suas razões que são bem complexas.
Não é sem dúvida este o momento para uma nação francesa profundamente ferida, para uma Europa profundamente perturbada e para uma civilização ocidental abalada, de se lembrar da origem deste potencial de conflito explosivo e momentaneamente não dominado do Médio Oriente – do Afeganistão e do Irão até à Arábia Saudita, ao Egito e ao Sudão.
Recordemo-nos somente do que se passou nesta região desde a crise de Suez de 1956. Uma política dos Estados Unidos, da Europa e da Rússia determinada quase que exclusivamente por interesses geopolíticos e económicos, nesta frágil região do mundo, confrontada com uma herança da época colonial ao mesmo tempo artificial e feita também de múltiplas feridas; e esta política aproveitou-se dos conflitos locais sem nenhuma preocupação de estabilizar seja o que for.
Como cada um bem sabe, os conflitos que opõem os sunitas e os chiitas, de que o fundamentalismo do Estado islâmico tira hoje em primeiro lugar as suas energias, desencadeou-se incontestavelmente na sequência da intervenção americana no Iraque decidida por George W. Bush, que escarneceu de todas as regras do direito internacional.
O golpe mortal contra o processo de modernização destas sociedades explica-se igualmente por certos aspectos específicos da muito orgulhosa cultura árabe. Mas a ausência de perspectiva e de esperança quanto ao futuro que atinge as jovens gerações destes países, ávidos de ter uma vida melhor, ávidas também de reconhecimento, é em parte o facto da política ocidental.
Estas jovens gerações, quando falham todas as tentativas políticas, radicalizam-se a fim de não perderem o seu amor-próprio. Tal é o mecanismo desta patologia social. Uma dinâmica psicológica similarmente desesperada, que encontra ainda aí a sua origem nesta falta de reconhecimento, parece também fazer de pequenos criminosos isolados, procedentes das populações imigradas europeias, os heróis perversos de comandos de assassinos teleguiados. Os primeiros inquéritos jornalísticos consagrados ao meio e aos itinerários respectivos dos terroristas do 13 de Novembro é o que nos levam a supor. Ao lado da cadeia de causalidade que conduz à Síria, existe uma outra, que chama a atenção sobre os destinos errados da integração nos centros sociais das nossas grandes cidades.
Aquando dos atentados do 11 de Setembro de 2001, intelectuais, entre os quais o filósofo Jacques Derrida e você mesmo, tinham-se preocupado com o retrocesso das liberdades democráticas ameaçadas pelo aumento da pressão contra o terrorismo e o recurso a noções como “a guerra das civilizações” ou “os Estados mafiosos”. Este diagnóstico foi largamente confirmado pelo uso da tortura, pelos controlos da NSA, pelas detenções arbitrárias de Guantanamo, etc. Uma luta contra o terrorismo que manteria o espaço público democrático intacto é, na sua opinião, possível ou pensável ? E em que condições?
Um olhar retrospectivo sobre o 11 de Setembro pode apenas conduzir-nos a verificar, como muitos amigos meus americanos o confirmam, que “a guerra ao terror” de Bush, de Cheney e Rumsfeld danificou fortemente a constituição política e mental da sociedade americana. A lei Patriot Act adoptada na altura pelo Congresso, e ainda em vigor hoje, atinge os direitos fundamentais dos cidadãos, e atinge mesmo na sua substância a Constituição americana.
E é-se assim autorizado a dizer a mesma coisa da extensão fatal da noção de combatente inimigo, que legitimou Guantanamo e outros crimes, e que não foi afastada senão pela administração Obama. Esta reacção irreflectida aos atentados do 11-setembro, que tinham sido até então inconcebíveis, explica em boa parte a propagação de uma mentalidade encarnada hoje por uma personalidade também inclassificável como Donald Trump, candidato nas primárias republicanas. Eu sei, isto não é, em nada, a resposta à sua pergunta. Mas não podemos nós, tal como o fizeram os Noruegueses em 2011, depois do pavoroso atentado cometido sobre a ilha de Utoya, resistir ao primeiro reflexo do retrocesso face ao desconhecido incompreensível e da agressão contra “o inimigo interno”?
Tenho uma grande esperança de que a nação francesa dê ao mundo um exemplo a seguir, como ela o fez após o atentado que visou Charlie Hebdo. Não há necessidade para isso de ripostar contra um perigo fictício como “a submissão ” a uma cultura estrangeira que, supostamente, ameaçaria. O perigo é bem mais tangível. A sociedade civil deve evitar sacrificar no altar da segurança todas as virtudes democráticas de uma sociedade aberta que são a liberdade do indivíduo, a tolerância no que diz respeito à diversidade das formas de vida e a boa disposição adoptar a perspectiva de outros. Face a uma Frente Nacional que se reforça, isto é mais fácil de dizer do que fazer.
Mas existem boas razões para reagir assim, o que têm pouco a ver com os encantamentos. A mais importante é evidente: o preconceito, a desconfiança e a rejeição do Islão, o medo do Islão, e a luta preventivo contra ele, devem muito à pura e simples projecção. Com efeito, para os jihadistas o fundamentalismo exprime-se sob a forma de um código religioso mas o fundamentalismo não é, de forma nenhuma, uma religião. Poderia recorrer, em vez da linguagem religiosa que utiliza, a qualquer outra linguagem religiosa, e mesmo a qualquer ideologia que prometa uma justiça redentora.
Os grandes monoteísmos têm origens que recuam muito longe no tempo. O jihadismo, em contrapartida, é uma forma absolutamente moderna de reacção às condições de vida caracterizadas pelo desenraizamento. Chamar a atenção, com um objectivo preventivo, sobre uma integração social disfuncional ou sobre uma modernização social falhada, não é naturalmente isentar os autores destes atentados à sua responsabilidade pessoal.
A atitude da Alemanha face ao afluxo dos refugiados surpreendeu positivamente, apesar dos retrocessos recentes. Pensa que a vaga terrorista possa alterar este estado de espírito – dado que certos islamitas terão procurado infiltrar-se na onda dos refugiados?
Espero claramente que não. Estamos todos no mesmo barco. O terrorismo assim como a crise dos refugiados constituem desafios dramáticos, talvez desafios de situação limite e exigem uma cooperação estreitamente solidária à que todas as nações europeias até agora ainda não se decidiram levar a cabo, incluindo as que estão entre- si ligadas pela união monetária (tradução do alemão por Frédéric Joly).
Jürgen Habermas nasceu em 1929. O seu nome está associado à Escola de Frankfurt. Habermas desenvolve na sua obra uma filosofia do espaço público democrático.
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