CRÓNICA DE DOMINGO – Bom Natal! – por Carlos Loures

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O consumo transformou-se numa religião. Talvez fosse mais correcto dizer que o consumo é a religião.Analisemos os vocábulos – o substantivo feminino – religião, sabemos que significa o culto tributado a uma divindade; o dever sagrado de respeitar uma doutrina- E consumo?

Na entrada “Consumir” do Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, temos: Consumir: «v. tr. (do lat. Consumere). Gastar, destruir, extinguir, corroer até completa destruição. Enfraquecer, abater.» E continua com muitas outras acepções terminando com «Enganar, iludir». Pelo meio, tem as acepções mais comuns – «Dar extracção, procurar géneros alimentícios, artigos fabricados, etc.\\ Despender, gastar ||» e outras menos comuns «Matar, assassinar. || Devorar em silêncio. E entra no foro da liturgia católica: «Desfazer a hóstia na boca. || Receber (o sacerdote), na missa, o corpo e o sangue de Cristo, sob as espécies do pão e do vinho consagrados.»

No plano filológico, estamos conversados.

Com uma população economicamente debilitada por uma criminosa política de austeridade, estamos mergulhados na sede de consumo que esta época festiva sempre provoca. Poderia aplicar-se aqui, no plano simbólico, a teoria dos reflexos condicionados. Condicionadas para consumir, desaparecido ou radicalmente diminuído o poder de compra, as pessoas continuam a comprar, a encher grandes superfícies, sacrificando ao vício do consumo a satisfação de compromissos, a aquisição de bens prioritários – quem sabe se não mesmo, cuidados de saúde?

A relação entre valor de uso e valor de troca, outrora base de negócios importantes, quase deixou de funcionar, pois o valor de uso foi substancialmente depreciado. O que é usado, o que não está em moda, o que funcionando perfeitamente foi ultrapassado por um modelo mais recente, quase não tem valor.

Em países do chamado Terceiro Mundo, as pessoas vestem roupas cerzidas, sapatos remendados e deslocam-se em automóveis que na nossa sociedade há muito teriam sido considerados sucata. Todos os anos deitamos fora roupas em bom estado, porque já não se usam. O hábito de trocar de carro, leva-nos a vendermos por tuta e meia carros que funcionam perfeitamente. Isto é, o modelo de sociedade em que vivemos, alimenta-se do consumo supérfluo. Os jovens vendem a alma ao diabo por umas sapatilhas da Nike. O choque consumista nas famílias pobres é de efeitos devastadores. Incapazes de compreender por que razões os pais insistem em os vestir na loja do chinês, jovens enfurecidos vão ao ponto de assaltar estabelecimentos. Trazem as sapatilhas, as t-shirts, as jeans, das almejadas marcas (muitas vezes de qualidade semelhante à da loja do chinês e confeccionadas também em países do Terceiro Mundo em regime de quase trabalho escravo). Mas ostentam a marca o que, para eles, faz toda a diferença.

Por isso, fica-se na dúvida – Quando desejamos um Bom Natal, o que queremos dizer? Será que ainda faz sentido?

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