O GRITO DO COIOTE/3

O HOMEM QUE MATOU MARILYN MONROEpor Sérgio Madeira

O director do jornal chamou-me ao seu gabinete, coisa que  raramente acontece e que, quando sucede, me deixa sempre um pouco enervado, pois geralmente não é para nada de bom. Estava quase deitado no seu cadeirão, olhando o tecto. Segurava o que parecia ser uma carta, como se estivesse à espera de uma decisão divina, sem deixar de olhar o tecto, fez sinal para que me sentasse. Depois endireitou-se e, subitamente, virou o rosto e fitou-me com um olhar que, na sua imaginação, é perfurante e atinge o centro onde a vítima esconde os segredos mais íntimos e importantes:

– Tenho aqui uma carta de um tipo que me deve conhecer, pois trata-me por tu e por Chico. Mas não me lembro dele.

– Talvez um amigo de infância, um colega de escola… – arrisquei.

– É o que penso. Mas deve ser um tipo importante. Tu cá, tu lá com gente famosa…Diz que matou a Marilyn Monroe e sugere que o entrevistemos. Penso que você, sendo o homem da secção de cinema…

E lá fui até à moradia da Avenida Gago Coutinho, uma peça da arquitectura Art Deco entalada entre dois blocos de apartamentos.

– O professor está à sua espera – disse a senhora de meia-idade, vestida de branco, com ar de enfermeira, que me abriu a porta e me conduziu até ao pequeno jardim das traseiras onde um homem idoso – mais de 80 anos –  calvo e ligeiramente obeso, vestindo um roupão de algodão turco, lia o que parecia ser um breviário e tomava apontamentos num caderno. Quando me viu, semi-ergueu-se. Voz bem timbrada e gestos contidos:

– Ainda bem que veio… – perguntou-me se bebia alguma coisa. Declinei e ele não perdeu tempo:

– O senhor deve ter muito que fazer e eu, nem se fala… Vamos ao que interessa …

– Tenho algumas perguntas…

– Nada de perguntas.

– As entrevistas costumam…

– Pois é. Mas então não será uma entrevista – será um depoimento.

– Tirei o gravador da pasta e quando lhe fiz sinal começou:

– Conheci a Marilyn quando fez Don’t Bother to Knock. Logo me apercebi de que para além da beleza física, havia naquela miúda um talento que só um grande realizador podia fazer despontar, desculpe o lugar-comum. E apressei-me a escrever  ao Billy Wilder, advertindo-o – “Rapaz, não adormeças, corre a falar com o Buddy – referia-me, obviamente ao Buddy Addler, o homem que mandava na 20th Century Fox e que substituiu o Zannuck que, coitado, nunca se entendeu com  o Spyros Skouras, o tipo da massa. Foram dias de grande trabalho para mim – disse ao Skouras «Spyros, meu velho malandrete, pede ao Zannuck que volte – é nervoso, tem mau feitio, mas é um crânio» E escrevo ao Buddy, dizendo-lhe «Olha rapaz, o Billy vai falar contigo.. e expliquei-lhe pacientemente a minha ideia… um argumento leve, mas bem urdido – e disse-lhe, escuta moço, bem sei que podes recorrer aos  melhores argumentistas, mas para uma coisa desconcertante de boa, só o Billy será capaz – e tens aquela rapariga bonitinha, a Marilyn … » – fez uma pausa – Sabe o que aconteceu?

– Não senhor.

–  Pois não ligaram. O Buddy, para cúmulo, até morreu. E só em 1958 o Billy se resolveu a seguir o meu conselho – mas cometeu um erro de palmatória – o Tony Curtis! Estava mesmo a ver-se que não se ia dar bem com a Marilyn e avisei-o: «Billy, já nos conhecemos há muito tempo e sabes que eu sou pão -pão, queijo – queijo, quem quer panos quentes vá bater a outra porta – o Tony e a Marilyn não vão dar-se bem. O Jack Lemmon, sim senhor, tiro o chapéu, foi uma escolha acertada. Agora o Tony… Billy, meu cara unhaca, onde tinhas tu a cabeça?» E, meu dito, meu feito – O Tony numa entrevista sai-se com aquela de que um beijo na Marilyn era como beijar o Adolf Hitler… Ela, coitada, não gostou – Tentei põr água na fervura – «Marilyn, não ligues, são coisas que se dizem. Vai por mim, rapariga, o Tony não é mau tipo, um pouco amaricado, estúpido,  mas tem bom fundo». Pois não quis saber. E o mesmo quando a avisei quanto ao Miller. Ainda lhe disse, «Escuta moça, tens propensão para o desastre. O Di Maggio não era homem para ti e esse escritor também não»: Ligaram vocês?  Assim ligou ela. Eu fui enchendo…quando me chegaram aos ouvidos zunzuns de que andava metida com o presidente, escrevi-lhe uma carta muito dura. Escrevi-lhe, nunca me hei-de esquecer, em 30 de Julho. Estava eu de férias em Torremolinos.  No dia 5 de Agosto, encontraram-na morta.  – a voz embargou-se-lhe – Bem sei que a minha carta não a poupava, mas nunca pensei que ela reagisse de forma tão dramática.

A senhora de branco veio silenciosamente trazendo um copo com água e um comprimido.

– Não terá sido por a terem excluído de Something  Got to Give? –  aventei cautelosamente – Deu um grito que me fez dar um salto na cadeira e engasgou-se com o gole de água que bebera:

– Está a ver? Essa é uma das explicações mais tontas … desculpe que lhe diga. – Deu uma gargalhada – então o meu jovem amigo acredita que a Marilyn… a Marilyn, é dela que falamos, não da Doris Day, se ia matar por ser excluída de uma pessegada realizada pelo Cukor e onde contracenava com um canastrão como o Dean Martin? Não. Foi a minha carta – a voz embargou-se-lhe – fui impiedoso, cruel, lembrei-lhe os tempos em que era uma fedelha… chamei-lhe….galdéria – soluçou – Como pude ser tão ordinário? Bem tenho tentado acreditar nas hipóteses mais loucas, teorias da conspiração, incluindo aquela de que foi a CIA que a executou. Mas cá no fundo, sei que foi a minha carta.

A enfermeira interrompeu:

– Professor. São horas de descansar.

– Descansar? Está bem está. Meteu a folha que arrancou do caderno num sobrescrito e endereçou-a com letra firme e elegante:

– O meu amigo, faz-me um favor? – assenti e ele acrescentou – ponha-me esta carta no correio… se fosse possível, na estação dos Restauradores ou na Portela.

– Pode ficar descansado, professor.

Fez-me, distraidamente, um aceno de despedida.

A empregada veio acompanhar-me à porta. Quando eu ia a sair, estendeu a mão:

– A carta por favor.

– Prometi-lhe… –

– Eu sei. Veja a quem é dirigida.

Olhei o envelope:

Ioannes PP.XXIII

Stato della Città del Vaticano

Olhei a senhora. Sorria:

– O tempo parou para ele… um AVC– Todos os dias acorda num dos anos 60.

– Boa escolha… disse eu. Dei-lhe a carta.

O dia estava fresco, mas bonito.

Tomei um táxi. Até me deixar à porta da redacção, o taxista proporcionou-me um curso acelerado sobre a arte de pescar achigãs.

(Do livro Gente do cinema)

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