Selecção e tradução de Júlio Marques Mota
Dois pontos de vista sobre o massacre de Paris
1. Djihadistas contra Homo festivus -Porquê tanto ódio ? Porque são eles, porque somos nós.
Elisabeth Lévy, Djihadistes contre Homo festivus – Pourquoi tant de haine? Parce que c’est eux, parce que c’est nous.
Revista Causeur, 16 de Novembro de 2015
“Mesmo assim não temos medo! ” No domingo à noite, enquanto que um falso alerta esvaziou a Praça da República em poucos minutos, o slogan, inscrito sobre um cartaz abandonado, ressoa como uma bravata de crianças. Esta frase difundia-se muito rapidamente, os jornalistas e os comentadores propagam a boa palavra com convicção: “A França não tem medo! ”. Realmente, a França tem terrivelmente medo. Se sai dela, é para ter menos medo em conjunto, uns contra os outros.
A mensagem passou: doravante, ninguém está abrigado. Isto pode cair-nos em cima, ainda que não se tenha nada que faça enervar os jihadistas como desenhar Mahomet ou ser-se de origem judaica. Então, há talvez alguma razão para se ter medo. E a única maneira de nos opormos a este medo, é compreender o que nos está a acontecer. Os molinetes de retóricas, as declarações encantatórias, os apelos aos valores e outras trémulas expressões unitárias, por bem tranquilizantes que sejam, não serão suficientes para responder à duas perguntas essenciais – quem são os nossos inimigos? Porque é que eles nos atacam?
Desde a sua primeira intervenção, o presidente da República foi claro: conhecemos os culpados e serão punidos. Contudo evitou designá-los explicitamente, mas cada um de nós compreendeu que se tratava de Daech ou Estado islâmico, como se queira dizer. Assim instala-se vagamente a ideia de que a França foi atacada por uma potência externa que se poderia por conseguinte combater e vencer sobre uma frente externa. O desagradável disto, é que este inimigo remoto recruta os seus soldados no nosso país. Independentemente do contributo logístico, financeiro e técnico da sociedade mãe, temos igualmente que nos bater contra um djihadismo de fabricação local. Descobriu-se isso com Merah, o terror islamista pode sair da escola da República. Não se sabe quantos Franceses estão prontos hoje, a pegar em armas contra o seu país. Nem quantos outros o aprovam secretamente. Mas é tempo de dizer que estes franceses não são vítimas. São os nossos inimigos. E traidores, ainda por cima. É necessário trata-los como tais. “Não se deixarão andar sobre os pés”, dizia-se um homem ainda muito jovem numa televisão. Não é dito em nenhuma parte que a lei deve ser suave.
Porque nos querem fazer mal? Se a pergunta nos incomoda muito é porque o ódio dos assassinos funciona como um espelho identitário. Nós tornamo-nos no que eles odeiam. Edwy Plenel pensa que quiseram matar a sociedade multicultural e mestiçada (do bairro Oberkampf?), Laurent Joffrin pensa que querem atingir o nosso amor pela liberdade, outros estão convencidos que é a nossa bela democracia que querem abater. Um filósofo assegura que odeiam “a República festiva e social”. Acredito, pela minha parte, que eles estão a querer abater certamente o que nós temos de mais caro: a festa e o consumo. O cão de tipo infiel é o Homo festivus. Muray já o tinha calculado: o que querem destruir os djihadistas, é um ventre frouxo, um Ocidente cansado de ser ele mesmo, um Ocidente que procura a sua redenção no consumo. Pois bem, é este Ocidente que é necessário defender e com ele o direito de levar uma existência banal, agradável e vã. Face aos djihadistas, o Homo Festivus, sou eu! “Venceremos. Venceremos. Porque somos nós os que estamos mais mortos. “, escreveu Muray. Que este me desculpe mas, hoje, o luto está ainda demasiado fresco para se resignar a esta sinistra conclusão. Prefiro pensar que venceremos porque somos os mais frívolos, os mais preguiçosos, os mais fracos. Talvez não seja uma conclusão gloriosa, mas é uma conclusão bem agradável. Não é nada.
Elisabeth Lévy, Revista Causeur, Djihadistes contre Homo festivus – Pourquoi tant de haine? Parce que c’est eux, parce que c’est nous… publicado em 16 de Novembro de 2015. Texto disponível em:
http://www.causeur.fr/attentats-paris-daech-bataclan-muray-35422.html
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2. Islamismo e decadência – à procura do senso comum perdido
Benjamin Edgard, Islamisme et décadence – A la recherche du sens commun perdu
Revista Causeur, 23 de Novembro de 2015
Os últimos acontecimentos trágicos de que a França foi vítima não devem ser analisados em termos de compaixão ainda que o recolhimento seja indispensável. É seguramente muito desolador ver multidões humanas inocentes serem mortas por terroristas sem nenhum vergonha. Este terror praticado sobre o solo francês, e potencialmente em todas as sociedades ocidentais, obriga-nos imperiosamente a interrogarmo-nos sobre as motivações destes actos. Porque é que certos indivíduos de origem muçulmana ou convertidos ao Islão – Maxime Hauchard ou Christophe Dos Santos – se tornam uns bárbaros, prontos a tudo , mesmo à aniquilação da sua própria vida, para destruir o Ocidente? É claro que não se poderá responder à esta questão nem retomando um léxico marcial, psicologizante ou religioso, nem os factos históricos anacrónicos. Como escrevia Charles Péguy, “a modernidade impôs à humanidade condições tais, tão inteiramente e tão absolutamente novas, que tudo o que nós sabemos pela História, tudo o que sabemos pelas humanidades precedentes não nos podem de modo algum servir, não nos podem fazer avançar no conhecimento do mundo onde vivemos. Não há precedentes.”
Transformar-se de repente alguém em chefe de guerra, argumentar com a loucura para justificar estes massacres e para encontrar nestes actos uma origem nos textos sagrados não nos esclarece em nada sobre os objectivos destes homens e mulheres que decidem atacar toda a Europa. Num texto intitulado “porque é que o islamismo não pode ser explicado a partir da religião”, o filósofo alemão Norbert Trenkle afirma que “as narrativas religiosas não são, para eles, outra coisa que não seja apenas números e códigos culturais para consolidar o seu estatuto de sujeito precário. (…) Trata-se sobretudo de indivíduos, marcados pelo capitalismo, que enquanto tal procuram um apoio num colectivo aparentemente potente, com quem se podem identificar.” Com efeito, os lugares onde vivemos todos ele representam o advento que Nietzsche chamava ao século XIX “o niilismo”. São caracterizados pela destruição de todos os sítios, de todos os mundos, de todas as realidades até aí existentes e a sua recomposição de acordo com pontos de vista totalmente abstractos, desdenhando das particularidades locais ou regionais. Disso é testemunho no nosso quadro os acordos de Sykes-Picot em 1916, onde o Médio Oriente foi redesenhado de acordo com princípios matemáticos: zonas A e B, zona azul francesa, zona vermelha britânica. É suficiente de resto olhar para as fronteiras da África para constatar os traçados arbitrários e rectilíneos desde a conferência de Berlim de 1884 e 1885.
Consequentemente, não poderemos compreender esta tragédia sem estar a ter em conta que se trata de uma reacção a uma filosofia de que nós somos os herdeiros. Sofremos as consequências e estendemos a sua lógica um pouco mais por cada dia que passa: a de um modo de produção (salariado), de consumo (mercadorias) e de circulação (Schengen) onde vale tudo, onde tudo não vale mais nada e onde tudo é avaliável. Disto é testemunho, por exemplo, o último tremor de terra financeiro de 2007-2008; ou ainda as recentes veleidades do Comissário europeu Jonathan Hill de desenvolver “uma União do mercado dos capitais”, daqui até 2019. Face a este rolo compressor diário, os corpos tendem a escapar-se, como podem, à este movimento deletério. Quer pelo consumo de substâncias legais ou proibidas; quer por um trabalho obsessivo destinado a tornar-se o melhor empregado do mundo; quer por se entrincheirar por detrás de um discurso pseudo – religioso. Num artigo publicado em Le Monde, a meia-irmã dos irmãos Kouachi, comanditários dos atentados de Charlie em Janeiro passado, testemunha que “Chérif dizia que o vazio apenas podia ser preenchido pela religião”. Ora, é efectivamente esta ausência de referências que cada Europeu de primeira, de segundo ou terceira geração percebe todos os dias: o dinheiro distribui os papéis, deteriora os estatutos, e provoca assim a marginalização crescente de uma parte consequente de populações que se têm tornado inúteis.
Não é suficiente injectar milhões de euros nos subúrbios ou de alterar “a paisagem urbana” para evitar a multiplicação destes actos aterradores. Tudo isto não consiste, uma vez mais, apenas em utilizar estes potenciais trabalhadores para evitar assimilá-los a uma transcendência concreta e disso fazer um fundo de reserva de mão-de-obra disposição de uma função salarial sempre mais alienante. Todos, que sejam franceses e muçulmanos de origem, franceses de gerações mais remotas, belgas ou ainda alemães, andam à procura de um sentido comum que já não encontram pelas vias comuns da vida quotidiana, que os obrigam a ostracizarem-se para se tornarem, talvez, um dia os novo Netchaïev. Que sejam de Air France ou Navarre.
Benjamin Edgard, Revista Causeur, Islamisme et décadence – A la recherche du sens commun perdu. Texto disponível em:
http://www.causeur.fr/islamisme-et-decadence-35521.html .
Publicação autorizada.
*Photo : SIPA.00713541_000001.