MUNDO CÃO – A VIDA HUMANA É MAU NEGÓCIO – por José Goulão

Mundo Cão

O governo da Suécia decidiu trocar a sua intenção de reconhecer a independência do Sahara Ocidental pela abertura duma loja do Ikea em Casablanca, que o governo de Marrocos estava a dificultar, mantendo o negócio como refém. Aqui chegámos nesta Europa, que apregoa os “direitos humanos”, o “direito internacional” e a “liberdade política” mas logo deles se esquece quando está em causa um bom negócio, de preferência privado.

Não é novidade em lugar nenhum do mundo, nem mesmo no interior de Marrocos, o sofrimento em que vive a população do Sahara Ocidental, antiga colónia espanhola ocupada ilegalmente pelas tropas da monarquia de Rabat, sem que a ONU consiga fazer valer as decisões descolonizadoras que entretanto tomou.

Nos campos de refugiados em Tindouf, na Argélia, ou nos Territórios Ocupados, a população saharaui está submetida a um pariato e a uma repressão que esvaziam de conteúdo quaisquer direitos humanos, a começar pelo mais elementar, o direito à vida. Tortura, prisões arbitrárias e sem culpa formada, repressão da vida quotidiana que, não raramente, atinge a proporção de massacres são realidades do Sahara Ocidental, de quem se diz que “é a última colónia africana”, embora saibamos que para o dito ter validade haja que meter entre parêntesis as neocolónias, que são muitas através do continente.

Ora houve tempos, por exemplo entre 2012 e 2014, em que destacados partidos e políticos suecos, designadamente o Partido Social Democrata e os Verdes, se declararam inquietos com as atrocidades de que é vítima o povo saharaui, de tal modo que, no Parlamento de Estocolmo, se declararam favoráveis ao reconhecimento da independência do Sahara Ocidental.

Agora que são governo, sociais-democratas e verdes já tinham os instrumentos necessários para passarem da intenção à prática, o que seria um verdadeiro marco no cenário da União Europeia.

Das melhores intenções, porém, estão o mundo, a Europa e o inferno cheios. Eis então que o império comercial Ikea desenvolveu diligências para instalar mais uma das suas megalojas, agora em Casablanca, Marrocos. Tudo parece ter andado bem e depressa e só faltava praticamente cortar a fita; porém, contra todas as aparências, as portas tardavam em abrir. Até que o governo da Suécia, finalmente, pronunciou as palavras mágicas, sinónimos renovados do velho “abre-te Sésamo”: declarou que optou por “focar toda a sua energia” no “processo de mediação” da ONU no Sahara Ocidental, processo esse que “não seria ajudado pelo reconhecimento da independência” do território. Por isso, segundo a ministra dos Negócios Estrangeiros, Margo Wallstrom, “o governo da Suécia decidiu não reconhecer o Sahara Ocidental e prefere seguir as posições dos governos anteriores”.

Também não é segredo em qualquer lugar do mundo, e no interior de Marrocos, que o dito “processo” conduzido pela ONU é uma ficção. Há décadas que as instâncias de poder nas Nações Unidas aceitam e permitem todas as manobras dilatórias de Marrocos impedindo que seja convocado um referendo no qual os cidadãos do Sahara Ocidental decidam o seu destino. Referendo esse cuja realização é sustentada por várias resoluções do Conselho de Segurança, redigidas em letra morta. A ONU está para o Sahara Ocidental como está, na prática, para a Palestina, como esteve para a Líbia, o Iraque, a Síria, o Kosovo, a Bósnia-Herzegovina ou, se recuarmos mais de meio século, como esteve para a Coreia: inútil ou então fazendo pior quando intervém

O “processo” no qual o governo da Suécia promete “focar toda a sua energia” é o status quo que permite a tortura, o assassínio político, o universo concentracionário de campos de refugiados, a negação dos direitos de cidadãos que, segundo a Carta da ONU – mas só a Carta – nasceram “livres e iguais”.

Nos areópagos da diplomacia diz-se que a Suécia “suavizou” a sua posição em relação ao caso do Sahara, e tanto bastou para Marrocos levantar o bloqueio à abertura do Ikea de Casablanca. Em política dir-se-á que o governo sueco manifestou pragmatismo; em linguagem de todos os dias, Estocolmo virou o bico ao prego e sacrificou o direito internacional no altar do híper negócio da venda a retalho.

Amanhã, depois de amanhã, por tempo cada vez mais indeterminado, graças à ONU, o povo saharaui continuará a sofrer o seu martírio. Em compensação, o azul e amarelo do Ikea, tal como na bandeira sueca, brilharão resplandecentes também em Casablanca. Tudo está bem quando acaba bem: respeitou-se a vontade dos mercados – a vida humana é mau negócio.

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