SINAIS DE FOGO – MOVIMENTO PERPÉTUO (Peça em seis actos sobre um Homem do Teatro) – por Soares Novais

 

sinais de fogo

 

Leandro Vale

 

 

1º Acto – Em boa verdade já não me lembro ao certo quando a vida do Leandro Vale se cruzou com a minha. E onde. Sei, isso sim, que foi antes do dia “inicial inteiro e limpo.”

E sei-o porque quando saíamos da “Flor dos Congregados”, velha adega da “baixa” do Porto e dobrávamos a esquina da “Sampaio Bruno”, rumo à “Brasileira” ou ao “Montarroio”, tínhamos o cuidado de confirmar se os nossos passos não eram alvo de alguma atenção especial…

Pela “Brasileira” ou pelo “Montarroio” ficávamos à conversa horas seguidas, aconchegados pelo “rojão” em pão, as papas de sarrabulho e o “branco” da Lixa que o Alberto nos tinha servido na “Flor”.

O Leandro Vale estava, então, na casa dos “trinta” e eu andaria pelos dezasseis, dezassete anos, metidos em corpo lingrinhas e cabeça aconchegada por farta cabeleira.

2º Acto – Com o Leandro partilhava as minhas inquietações e os meus sonhos; e ele ouvia-me lá do alto do seu corpanzil impositivo e imponente, com a cumplicidade de um Amigo.

E falávamos de Teatro, de Poesia e de Poetas, de Política, de Rádio e de Publicidade, que foi muitas vezes a actividade que lhe permitiu continuar à boca de cena.

Por vezes, quando algumas moedas sobravam nos nossos bolsos, subíamos até à Rua do Almada e descíamos até à cave do “Candeia Bar” para uma noitada de fados e copos.

O “Candeia Bar” era uma das duas “boites” que então havia no Porto, assim a modos como uma casa mal afamada, e tinha um porteiro: o senhor Lopes. Senhor Lopes que muitas vezes, sem o saber, ficou fiel depositário de panfletos proibidos, como aqueles que reclamavam liberdade para os presos políticos.

3º Acto – O Leandro Vale era um tipo em movimento perpétuo. (Foi sempre, mesmo depois de lhe terem amputado uma das pernas.)

Fazia Teatro, escrevia poesia, contos, peças, crónicas que lia na rádio, trabalhava em publicidade. E morava na Rua da Boavista, num andar que sempre foi casa de abrigo para gente de várias artes e de muita loucura.

Após o “25 de Abril” o Leandro resolveu bater com a porta: deixou o emprego na agência de publicidade e rumou a sul. A Évora.

Com Mário Barradas e outros ergueu o Centro Cultural e levou o Teatro às gentes mais simples do Alentejo.

“Ó puto, isto vai, isto vai” dizia-me sempre que nos cruzávamos em Lisboa, no Porto ou na Outra Banda, mas sempre na Margem Esquerda da vida.

 

4º Acto – Anos mais tarde, o Leandro deixou o Alentejo e rumou a Trás-os-Montes. Para fazer Teatro. Teatro em Movimento. Fixou-se em Bragança e com a sua companhia levou o Teatro às aldeias mais remotas.

Em Trás-os-Montes faz Teatro e diz Poesia, em celeiros, estábulos, palanques improvisados, estádios, clubes e colectividades populares; ao ar livre; no tablado dos teatros e no chão rijo da Terra Quente e da Terra Fria. Pinta o sonho pelos céus de uma vasta região que Torga considera o Reino Maravilhoso.

Bragança desiste dele e Leandro ruma a Torre de Moncorvo. Instala-se na antiga judiaria, possivelmente não muito longe da casa que  acolheu os antepassados de Jorge Luís Borges, o escritor e poeta argentino a quem dedicou uma peça de Teatro – Eu! Jorge Luís Borges.

Durante dez anos organiza em Torre de Moncorvo um festival internacional de Teatro, promove colóquios e exposições. Escreve; sonha; rasga o desespero com gritos e cóleras, perante uma mátria que envelhece e vê muitas das suas aldeias silenciadas pela ausência de gente.

5º Acto – Sucessivos maus governos e sucessivos medíocres governantes cortam os subsídios ao Teatro e muitas companhias morrem.

Leandro resiste com a irreverência que lhe era comum. Não tem companhia mas continua a fazer Teatro. Nos Açores, onde também faz Cinema sob a batuta do genial Zeca Medeiros; em Esmoriz e em Oeiras. “Renascer” e “Nova Morada” são agora o seu porto de abrigo e muitas vezes parte para Cuba, onde no Festival Internacional de Holguin faz ouvir as vozes de actores amadores portugueses. Seus cúmplices e amantes do Teatro como ele.

6º Acto – “Onde é que vossemecê anda?”, perguntei-lhe muitas vezes nos últimos anos. “Vossemecê está a dar aulas de formação”, respondia-me. Formação de actores. Novos e velhos.

Agora, já não falámos. Desde do dia 2 de Abril de 2015. Mas eu sei que o Leandro está algures numa galáxia a fazer Teatro. A formar actores e públicos. Em movimento perpétuo.

Soares Novais

Janeiro de 2016

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