O reaparecimento dos Jacksonianos – por Michael Pettis I

Falareconomia1

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

Revisão de Maria Cardigos

 

 

Nota introdutória ao texto de Michael Pettis

Quando um homem se põe a pensar numa estátua de febre a arder sai arte, sai poesia, sai Zeca Afonso. Como este escreveu:

Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar

Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar

E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder

Pois bem, num outro quadrante, os Estados Unidos de agora, quando alguém de grande cultura, Michael Pettis, que aprendeu e extraordinariamente bem a escutar os disfuncionamentos sociais e colectivos através do ruido das salas de mercados, dos seus gráficos, dos seus quadros, e que aprendeu também a descodificar os ruídos das ruas de Nova Iorque e dos sentimentos das suas gentes , se põe a pensar na sua estátua de febre a arder ( a da Liberdade) também aqui sai cultura, sai literatura, sai análise social, como no caso do nosso poeta Zeca Afonso.
É isto o que senti quando li o presente texto de Michael Pettis intitulado O reaparecimento dos Jacksonianos que abaixo vos apresentamos.

Coimbra 30 de Março de 2016

PS. Agradecemos ao autor o envio do respectivo texto e simultaneamente agradecemos a Maria Cardigos a leitura atenta que fez a esta tradução. Uma tradução difícil tanto mais quanto se trata de um texto profundo escrito por alguém de grande cultura que através dele quer mandar uma mensagem claramente compreensível de respeito e de fraternidade a um amigo seu, que viveu, cresceu e dormiu ao relento ( não na areia mas) nas ruas de Nova Iorque, e a todos os americanos que o sistema tem excluído dos ganhos doa cultura, do progresso e da globalização.
Um texto profundo feito com este objectivo seria necessariamente um texto difícil de transpor para a língua de Camões.

O reaparecimento dos Jacksonianos

usa

The re-emergence of the Jacksonians
Michael Pettis

Temos criticado Donald Trump com todo o humor fulminante que somos capazes de ter, e embora seja difícil imaginar um alvo mais fácil para o humor das elites, com seu narcisismo fanfarrão, a sua inconsistência intelectual, o seu registo discutível de negócios e o seu programa de televisão realmente estúpido , acima de tudo, as suas brutais irritações com aquele mau aspecto que a cabeleira lhe dá, tudo isto tem sido muito frustrante. Embora tenhamos mostrado mais uma vez que ele é desonesto, impróprio para o cargo da presidência, ele, não só tem sobrevivido como também parece estar a prosperar na série implacável do que para qualquer outro candidatos teriam sido verdadeiros golpes a coloca-los fora da corrida. Os partidários de Donald Trump são indiferentes à nossa inteligência e aos nossos argumentos, e nós nos convencemos de que isso só prova o que provavelmente não precisa de muita prova, que os seus apoiantes são imbecis racistas e que apoiam Donald Trump, por razões que são demasiado triviais para as discutirmos sequer. Isso assusta-nos porque colectivamente eles parecem estar a trazer algo de novo para a política americana.

Mas nós estamos enganados em todos estes pontos de vista. A maioria dos fãs de Trump não são imbecis racistas, e não só têm razões legítimas por detrás do seu apoio a Donald Trump, na verdade, como de facto são muito importantes. Nós estamos finalmente a começar a ver isso. Estamos errados, no entanto, por ver os acontecimentos recentes como sendo uma espécie de ponto de viragem na história americana. O ultraje é que a classe política americana está a ser rejeitada o que certamente traz perigos e riscos, mas muito menos do que o que pensamos porque na verdade nós já antes, e muitas vezes, passámos por isto. Basta-nos relembrarmo-nos da nossa história para podermos fazer alguns bons palpites sobre a forma como tudo isto vai evoluir.

Os partidários de Trump pertencem ao que chamamos, às vezes, a tradição Jacksoniana na história americana, e a sua história é seguramente anterior à data da corrida à Presidência do homem que lhes deu o nome, combina o impressionante com o vergonhoso. Como o próprio Andrew Jackson, eles têm-se mostrado dos mais ardentes defensores de alguns dos nossos valores americanos mais fundamentais enquanto estão a procurar sabotar outros . Enquanto os seus parceiros sociais na Europa-aceitaram em grande parte o seu limitado papel na política, com excepção de tempos a tempos quando eles se levantam em fúria e se transformam nos sans-culottes, os Jacksonians sempre exigiram serem ouvidos quando sentem que os seus direitos são ameaçados.

Mas enquanto Jackson pode contar com o apoio dos Jacksonians, Donald Trump não é Andrew Jackson e muito em breve, tal como a maioria dos seus predecessores, ele abandonará os seus apoiantes ou será abandonado por eles. Porque aos Jacksonians falta sofisticação e são, na sua maior parte, sem grande formação de modo que nos momentos em que as pequenas vitórias que têm alcançado são ameaçadas isto gera-lhes uma ansiedade profunda e a um nível tal que tem sido sempre fácil aos canalhas explorar este mesmo sentimento, como um dos seus maiores heróis no-lo lembrou, de que nós não podemos estar sempre a enganar as pessoas . Os Jacksonianos têm sido os defensores da democracia norte-americana mesmo quando a sua história tem sido manchada por erros de julgamento, e, embora o tempo de Donald Trump seja limitado, o efeito dos partidários de Trump pode ser positivo e de muito longo alcance a longo prazo para os EUA , mesmo com o risco de alguma loucura no plano do imediato.

Não vou pretender que eu já tinha sido um jacksoniano. No início de 1980, quando estava a começar a minha formação universitária, o meu irmão e eu vivíamos na conhecida Alphabet City de Manhattan e onde tínhamos um espaço para a música entre a Avenida C e 3ª rua . Um dos amigos que aí fizemos foi um dominicano de nome Dani, um brilhante e fortemente encantador jovem de 15 anos que no espaço de poucos meses depois do nosso encontro parecia ter feito de nós parte da sua família.

Com o conhecimento de Dani, nós rapidamente aprendemos o que é viver uma vida completamente estranha à nossa mas que ele tomava como um dado, como aceite. A vida diária de Dani combinava o que para nós era o romance das ruas agitadas de New York e o puro horror do viver de uma criança a residir num dos piores bairros da cidade. A sua vida consistia principalmente em praticar pequenos crimes e agitação de rua, evitando criar problemas com os gangues locais e entrando somente em lutas que à partida sabia que ia ganhar. .

Ele não ficou muito tempo com a sua mãe, dominicana, mas até ao momento em que, eu e o meu irmão lhe conseguimos obter um apartamento minúsculo na cave do nosso prédio, Dani geralmente dormia em locais abandonados em East Side ou em apartamentos de amigos e, por vezes, até mesmo numa caixa de madeira escondida numa rua lateral. Dani ia de vez em quando à escola e até que nós lhe tenhamos conseguido arranjar uma ajuda da Segurança Social dependia principalmente de pequenos roubos, de assaltos para ganhar dinheiro para as suas despesas (na verdade nós conhecemo-lo quando ele tentou levar-nos a comprar, como um verdadeiro amigo, uma caixa de cerveja roubada por ele no nosso bar). Quando tinha 16 anos, ele foi apanhado pela epidemia de crack que varria toda a cidade de Nova Iorque e foi-nos preciso bem mais de um ano difícil para que conseguíssemos que ele parasse.

Dani nunca conheceu o seu pai, mas tinham-lhe dito que o seu pai era metade Africano-Americano e metade da República Dominicana , embora se Dani quisesse parecer branco facilmente o podia fazer. Ao longo do tempo em que nos conhecemos, as suas duas irmãs mais novas terão ambas acabado por serem prostitutas e drogadas, tendo eventualmente morrido ambas de SIDA antes de Dani ter passado a casa dos 25 anos. O seu irmão mais velho, com o apelido muito inadequado de Hippie, era um tipo bastante assustador, fortemente marcado e atarracado, que tinha estado dentro e fora da prisão várias vezes. Ele também morreu cedo, por volta dos seus 30 anos, a meio de uma sentença de prisão de 12 anos. Hippie havia sido condenado por uma série de assaltos à mão armada em caixas electrónicas locais, e por ter forçado Dani a juntar-se a ele como vigia – e Dani, como a maioria de nós, tinha muito medo de Hippie para não fazer o que ele exigia – Dani foi ele próprio condenado a quatro anos de prisão.

Fiquei contente por ver Hippie na prisão por causa da maneira como ele tinha arrastado Dani para a prática do crime perigoso, mas o meu irmão, tanto mais resistente quanto menos crítico do que eu, iria enviar-lhe pacotes com produtos de higiene, cerca de seis ou sete vezes por ano. Depois da morte de Hippie a namorada do meu irmão mostrou-me algumas das cartas que Hippie tinha enviado da prisão ao meu irmão: mal escritas, com erros ortográficos, com as mais vulgares expressões de emoção, elas transmitiam, no entanto, uma gratidão quase comovente relativamente aos pacotes que eram a única evidência que Hippie teve durante os seus últimos anos de vida de que alguém do lado de fora cuidava ou pensava nele.

Com esse tipo de pano de fundo foi fácil supor que estava fora de qualquer hipótese um bom futuro para Dani, mas ele foi sempre brilhante e ambicioso. Eu acho que poderia ter sido eu a primeira pessoa a dizer-lhe o quão inteligente ele era, quando ele ainda tinha apenas 15 anos, porque quando eu o fiz, tive, em seguida, de insistir que não estava a fingir, a ser-lhe agradável, a sua boca tendo-se aberto num sorriso atrevido repentinamente e começando a mostra-se satisfeito quando percebeu que eu provavelmente tinha razão. Ele certamente era brilhante, e enquanto estava na prisão, Dani decidiu que iria completar o seu curso de ensino médio. Falamos por telefone quase todas as semanas para que ele pudesse ter orgulho no seu sucesso e sobre a facilidade que ele descobriu ter para trabalhar com os computadores.

(continua)

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