Carta do Rio – 99 por Rachel Gutiérrez

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Com alguma frequência me acontece perder o sono ou não encontrá-lo, mas ao contrário de quem recorre a remédios ou soníferos, considero minhas eventuais insônias um autêntico privilégio, que me permite ler, ou melhor, reler algum velho e querido livro no silêncio profundo da noite infinita. Abençoo, então, o silêncio e a “minha esplêndida solidão”, como diria o poeta Rilke.  É nessas horas que as leituras são mais entranháveis e fecundas.

Assim, pude reencontrar, recentemente, passagens belíssimas de um dos livros mais poéticos de um filósofo da Ciência, que foi também e acima de tudo um fenomenólogo da Poesia, o inigualável Gaston Bachelard ( 1884 – 1962 ) . O livro é La flamme d’une chandelle, (A chama de uma vela).

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Uma anotação na última página me diz que o li pela primeira vez em maio de 1990. E pelo selo ainda intacto, verifico que o comprei na antiga Livraria Dazibao, que tanto nos encantou e serviu anos a fio na Rua Visconde de Pirajá, de Ipanema, e que agora é um sebo visitado principalmente pelos frequentadores do cinema seu vizinho, em Botafogo.

Abro o livro ao acaso e encontro muitos grifos meus feitos delicadamente com régua e lápis, além de vários comentários nas margens.  E assim como Bachelard flanava entre poetas antigos e do seu tempo, vou flanando pelas anotações, pelos trechos assinalados e reencontrando passagens magníficas. Só que o aparente flanar do filósofo é o resultado de longos anos de pesquisa e convivência com os incontáveis poetas que ele amava e estudava, o meu, na calada de uma noite de insônia – puro prazer de redescoberta e devaneio.

Eis o que encontro assinalado na página 53: “Jean Cassou sonhava sempre em abordar o grande poeta Milosz com esta pergunta digna de ser dirigida a uma majestade: ‘Como tem passado Vossa Solidão?’ ” Sim, pois como sabemos, os poetas não só precisam dela mas se alimentam de solidão. E agora me dou conta de que poderia ter acrescentado um outro S à definição que costumava dar aos meus alunos quando me perguntavam que é, como surge, ou como é feita a poesia. Eu dizia: parece-me que um poema, para ser bom precisa satisfazer três requisitos ou três palavras que começam com S: Som, Sentido e Silêncio. Acrescento a quarta, a Solidão. Porque o silêncio a que me referia é o que as próprias palavras carregam quando sugerem mais do que dizem, quando evocam mais do que explicitam. Quando mais do que afirmar expressam, impressionam e deixam ressoar.

Já a solidão, tão recomendada por Rainer Maria Rilke, em suas Cartas a Um Jovem Poeta prepara, digamos assim, o ambiente propício à visita da Musa, que pode ser apenas a atmosfera adequada à concentração do trabalho criativo.

Voltando ao livro de Bachelard, o que sempre me surpreende e agrada é que ele cita poetas e escritores pouco conhecidos ou esquecidos e generosamente os recupera. É o caso de um certo professor de estética da Bélgica, por exemplo:

“Em uma conferência sobre a pintura de Matisse intitulada A poesia da luz, Arsène Soreil citou um poeta oriental que dizia:

As laranjas são as lâmpadas do jardim”

E a citação do professor que eu não conhecia me remete à exclamação maravilhada de uma menina de cinco anos, que lembrei no meu Narcisismo e Poesia, quando escrevi:

“Só as crianças de antigos jardins podiam dizer, numa encantadora síntese:

Ih! Papai! Como as estrelas estão cheirosas!”

Como dizia Eduardo Galeano, as crianças são naturalmente poetas. Depois, nós as estragamos…

E por falar em jardins, Bachelard diz que cada flor tem sua própria luz. “Cada flor é uma aurora.” (…) Antes dissera: “A cor é uma epifania do fogo; a flor é uma ontofania da luz.”… O filósofo que soube tão bem explorar os quatro elementos, nos diz, portanto, que as cores são manifestações reveladoras do fogo e as flores, revelações da própria essência da luz. Mais do que em qualquer outro, nesse livro de Bachelard é difícil distinguir o poeta do filósofo. Porque ele sabe exercer, com extraordinária liberdade, o direito de sonhar. E porque entende os poetas, diz: “O sonhador poeta vive na auréola de toda beleza, na realidade da irrealidade. (…) Tomado no rigor de seu ofício, o poeta, esse pintor pelas palavras, vive os prestígios da liberdade.”

No ano de 1992, que passei todo na Europa e principalmente na França, hospedei-me por alguns dias num albergue da juventude em Troyes, na Champagne, a 160 quilômetros de Paris. E fui até Bar-sur-Aube, a cidadezinha antiquíssima, que remonta à Idade de Ferro, onde nasceu Gaston Bachelard. Pude imaginar o filósofo caminhando pela beira do rio, contemplando um lago, ele que se definia como “um sonhador de lago”.

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Influenciada por ele, passei a ler alguns autores que ninguém mais lê, como me asseverou minha querida amiga francesa, que é crítica literária. Mas, que importa? Henri Bosco, por exemplo, me parece até hoje um escritor fascinante, envolvente, de uma sensibilidade que, reconheço, está fora de moda. Mas eu me comprazo ainda em lê-lo e apreciá-lo à luz de Bachelard.

E um dos trechos deste livro – La flamme d’une chandelle – que não me canso de reler é justamente o que evoca uma passagem do romance Hyacinthe de Henri Bosco, que conheço bem, quando um personagem solitário, que passa as noites lendo e estudando, enxerga ao longe, em outra casa na campina, a luz de uma outra vela, ou lâmpeão. Diz Bachelard:

Uma palavra, um gesto, interrompe a minha leitura. O narrador de Bosco puxa os postigos para esconder sua luz, eu me lembro de noites em que fazia o mesmo gesto numa casa de antigamente. O marceneiro da vila havia recortado, no meio dos postigos, dois corações para que o sol da manhã pudesse despertar a família. Então ao entardecer, e tarde da noite, a lâmpada, a nossa lâmpada, pelos recortes dos postigos, projetava dois corações de luz dourada sobre a campina adormecida. (p.105).

Volto ao início deste mesmo capítulo V, A luz da lâmpada, que começa com uma epígrafe de Rabindranath Tagore, na página 89:

Afin d’enhardir ma lampe timide

La nuit allume toutes ses étoiles

(A fim de encorajar minha tímida lâmpada

A noite ilumina as suas estrelas todas)

– “este curto poema foi escrito no leque de uma mulher”- revela Bachelard.

Muitos anos depois de tê-los descoberto e admirado graças ao filósofo, os dois versos me inspiraram um pequeno poema com este título provocativo:

              MODERNIDADE

É quando a vasta noite acende estrelas

 –  o vídeo, o som, painéis já desligados –

que a velha alma acorda peregrina

e evoca outros planos, outros mundos,

esferas de amplidão jamais pensada

onde a palavra Tempo é sem sentido

e a treva cintilante é Mãe-Rainha.

7 Comments

  1. Texto belíssimo em que um poeta fala de outros poetas. Obrigada, Rachel, pelo requintado prazer dessa leitura.

  2. Ah!Querida Rachel,no meio desse tempo,reencontro você, que é um clarão de lindas e doces lembranças..Um beijo querida e Bachelard sempre.iluminando tantos sonhos…concretizados ou não!
    No meio,uma dor que não sara!Você sabe do que e de quem falo!Bjs com carinho,sempre….

  3. Diante de tudo o que passamos,
    Te tudo o que sobrevém,
    Nos abasteça com emoção
    Acho que é o que está faltando no mundo hoje…
    Não vemos mas poesia nas coisas,
    Ou as coisas perderam a poesia talvez por fazermos de qualquer forma…
    Maravilhosa poesia
    Você é esplendorosa minha dama.
    Beijos

  4. Oi Rachel
    Texto lindo e inspirador..depois de lê-lo no silencio do ambiente onde estava…me permiti um momento de “Solidão”…que gratificante foram os pensamentos que me acometeram…Muito obrigado.

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