ABRIL DE PORTAS MIL À LIBERDADE ABERTAS, ABRIL FILHO DE TODOS NÓS, ONDE ESTAS TU? – por JÚLIO MARQUES MOTA – III

júlio marques mota

(continuação)

III – A propósito de  Abril lembro aqui a política actualmente seguida em França

França e o mercado de trabalho: a lei EL Khomri[1]

a) A lei EL Khomri provoca-nos numa corrida ao dumping social que nunca ganharemos

O conteúdo do projecto de lei EL Khomri não deveria surpreender ninguém. Este texto inscreve-se num longo e vasto movimento de desregulação do mercado do trabalho iniciado a partir da segunda metade dos anos 1970, quando os primeiros efeitos da concorrência internacional – a que se chamava então “o constrangimento externo” – começara a atingir a Europa Ocidental. Repetido à exaustão desde há uma quarentena de anos, o argumento é sempre o mesmo: para ganhar em competitividade, é necessário flexibilizar o mercado do trabalho. Ou seja, é necessário  ceder às exigências do grande patronato, ainda que as precedentes medidas neste sentido não tenham produzido nenhum resultado sobre o emprego. Pouco importa, dado que a classe dirigente considera que se o liberalismo não funcionar, é porque não fomos bastante longe no ultraliberalismo.

O preâmbulo do projecto assumido pelo governo de Manuel Valls considera que “os nossos modos de regulação das relações do trabalho, herdados da era industrial, foram reformulados múltiplas vezes, mas sem nunca serem verdadeiramente reformados”. Ora, “a mundialização, a parte crescente dos serviços na nossa economia” introduziram profundas mudanças. Sobretudo, de acordo com os seus redactores, “o digital transforma um a um todos os sectores económicos e altera a vida diária no trabalho”. Seria por conseguinte a informatização da sociedade, o desenvolvimento do comércio em linha, o aparecimento de Uber ou de Airbnb, que justificariam que se tenha de reduzir ainda mais o perímetro do direito do trabalho para ganhar em competitividade.

O projeto de lei EL Khomri retoma por seu lado, quase palavra para palavra, a análise que tem vondo a ser feita pela  Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económicos (OCDE). Para estes incondicionais do liberalismo, “a mundialização 2.0 acentua a fragmentação do processo de produção, cujas etapas intermédias são realizadas por fornecedores diferentes, com uma interconexão dos empregos além as fronteiras através das cadeias de valor mundiais”. Nada de novo, mais uma vez, por conseguinte, a não ser que é apenas o desenvolvimento das redes que acelera ainda mais a mundialização e torna a concorrência internacional sempre mais violenta.

O que é necessário recordar, é que em face desta realidade – a mundialização –, duas respostas são possíveis. A primeira consiste em aceitar a concorrência internacional como se aceita o facto que a Terra é redonda, que ela gira e que há as quatro estações de tempo. Se a concorrência for um fenómeno inevitável, então, certamente, é necessário procurar ganhar em competitividade. É necessário tentar rivalizar com o modelo chinês ou indiano, que fazem a economia de quase de todas as protecções sociais e ambientais, que não conhecem o que é uma greve, por assim dizer. É necessário sermos  concorrenciais em face do trabalho destacado que eé permitido, sem surpresa, pela ultraliberal União Europeia. Enquanto se escrevia o projecto de lei EL Khomri, a Urssaf e a Inspeção do trabalho controlavam uma sociedade húngara que intervinha sobre um estaleiro fotovoltaico na Gironda: remunerados oito horas por dia para uma duração efectiva de trabalho de 11 horas e meia, seis dias sobre sete, e os assalariados destacados ganhavam 2,22 euros à hora. Eis pois para onde nos leva, lentamente mas certamente, a “reforma ” do trabalho num contexto de mundialização.

 

b) França: O novo direito do trabalho ou a mutualização da pobreza

Michel Lhomme, politólogo, Revista Metamag

A concertação social de Manuel Valls sobre a muito contestada lei El Khomri assumiu todo o aspecto de um braço de ferro, com a FO e CGT a insistirem mais uma vez sobre o abandono do texto e a CFDT que reclama também a retirada da limitação das indemnizações nos tribunais do Trabalho. Os sindicatos agitam dois números vermelhos na lei controversa: a extensão do despedimento económico e a criação de um tecto para as indemnizações no tribunal do Trabalho.

A margem de manobra é estreita para o governo, menos desejoso em não se colocar de costas para os sindicatos do que virar as costas para o patronato, que já avisou contra “um enfraquecimento” desta reforma. Este projecto de lei, cuja apresentação em Conselho de Ministros foi transferida para 9 ou 24 de Março para deixar ao governo o tempo para eventuais rearranjos é suposto ser uma resposta ao desemprego de massa mas é sobretudo uma reforma favorável às empresas. Face a um novo dia de greves e de manifestações previsto para quarta-feira, 58% dos Franceses vêem já o movimento tomar uma tal amplitude semelhante à que teve a frente contra a lei que regula o primeiro contrato emprego de há dez anos, de acordo com uma sondagem

Na semana passada, o primeiro-ministro Manuel Valls tinha respondido abertamente às críticas dos sindicatos, enquanto viajava pela Alsácia, descrevendo a reforma do direito do trabalho como “indispensável”. “Leiam-na! ” gritou ele com desprezo, lamentando ter ” ouvido um monte de besteiras aqui e ali “. Dirigindo-se directamente aos sindicatos, Manuel Valls acrescentou: “Há alguns que estão ainda no século XIX, nós [o governo], estamos no século XXI e nós sabemos que a economia e o progresso social andam de mãos dadas. (…) “. No primeiro círculo do chefe de governo, a lei El Khomry, que provavelmente será a primeira lei da República Francesa a ter um patronímico árabe, um apelido que lhe convém bem desde que essas pessoas criaram grande parte da sua reputação no comércio de escravos, foi apresentado ao mundo como um “momento da verdade para a esquerda”, seguindo o exemplo das reformas laborais dos últimos anos na Alemanha, Espanha e Itália. Mas o que é esse momento da verdade: a nova escravidão legalizada?

O que é certo é que a partir de agora são os empregadores que ditam a lei no Palais Matignon mas também na Rue de Solferino. Transmitido ao Conselho de Estado, o projecto prevê o primado dos acordos de empresa em matéria de tempo de trabalho, a possibilidade de referendo para validar acordos minoritários, uma “segurização jurídica” do despedimento económico para as empresas, indemnizações do Tribunal de trabalho sujeitas a um tecto, acesso mais fácil ao emprego forfait-jour nas pequenas empresas.

Em suma, sem qualquer escrúpulo, os socialistas franceses desafiam sem problemas, os ganhos sociais até aqui alcançados com a negociação colectiva.

Na verdade, esta reforma é necessária para apoiar o que já lá está e ainda contra a qual o governo de esquerda nunca resistiu ou seja, o “comunismo de mercado”. Os agricultores sofrem uma queda dramática nos preços do leite o que não lhes permite manter mais nenhuma esperança de simplesmente poder pagar ou de, pelo menos, serem capazes de cumprir com os encargos da sua segurança social e com os empréstimos bancários por eles contraídos. Mas, na realidade, desde há décadas, o modelo agrícola francês tem estado a morrer com os golpes da indústria agro-alimentar que se preocupa apenas em aumentar os seus lucros e os dividendos dos seus accionistas sem se preocupar com um estilo de vida saudável.

Na verdade, o que acontece com os agricultores e com os taxistas independentes vai chegar amanhã aos hotéis independentes, aos restaurantes tradicionais, a todos os artesãos da França. Eles vão colocar a chave debaixo da porta através da UBERIZAÇÂO.

Num contexto evidente de penúria de trabalho, onde os serviços têm substituído as profissões e onde os empregos descartáveis estão agora a substituir fortemente os empregos estáveis e de duração indeterminada, cada um, necessariamente, tenta salvar a sua pele, de que não restará, depois,  grande coisa a não ser um salário de miséria e sem garantia de pensão de reforma. Na verdade, quando todas as coisas são iguais, os diplomas desvalorizados, as famílias (mono e homoparentais), as ideias, onde nada também economicamente já vale, então um veículo ligeiro de lazer (VLC) sem aprovação da prefeitura pode muito bem substituir um táxi caro. Pode-se pois suprimir – e é isso que estamos a fazer – os inspectores do trabalho uma vez que já não haverá nada para controlar no sistema do desenrasca e do emerdanço, no mundo do trabalho informal legalizado numa sociedade que minimizará os riscos, uma vez que o que se quer é sim maximizar os lucros, mesmo os mais insignificantes (um centavo é um centavo)-  Esta é a nova segurança social: a mutualização, a partilha, da pobreza, a selva, e não é a selva de Calais, que se oferece quase como um brinquedo em miniatura, mas é sim a selva mundializada da globalização universal, a do rendimento universal e de pobreza sem segurança social, na ausência de toda e qualquer moeda universal para assim poder amanhã tributar mais facilmente as poupanças.

Selva mundializada, comunismo de mercado?

É a lei do nivelamento médio individualizado ao mais baixo nível (a reforma do secundário na Educação), a tendência a igualizar por referência ao mais baixo denominador comum. É de resto o que muito precisamente o velho Malthus fustigava como sendo a lei dos pobres. Aplicada às nossas sociedades mercantis, esta teoria significa que qualquer um cada um pode consumir e ter acesso aos mesmos bens de consumo, qualquer que seja a sua condição, desempregado ou quadro superior e num contexto de crescimento contínuo da população, a curva dos mais pobres intersectaria então a da classe média, quando precisamente a classe média, a middle class se precariza cada vez mais. Esta teoria é aterradora e pouco ensinada nos cursos de economia do secundário mas tem o mérito de tirar as consequências mais extremas do mito igualitarista na economia.

Assim, não há realmente nenhuma vantagem, para uma maioria, em retomar à sua conta as virtudes consumistas de alguns (que obrigariam por exemplo a privilegiar os produtos agrícolas locais ou a tomar um táxi em vez de um VLC) e, contrariamente para estes últimos, livrarem-se das conveniências ligadas à libertação destas virtudes. In fine, “todos sendo iguais e colocados em circunstâncias semelhantes, não se poderia perceber porque é que um indivíduo se julgaria obrigado à prática de um dever que a outros desdenharia respeitar ” (Malthus, Ensaio sobre o princípio da população, de 1803).

Este quadro, é o quadro subjacente de toda a reforma do direito do trabalho. Visa a definir os princípios essenciais da igualdade das condições dos assalariados a fim de derrogar tanto quanto possível aos princípios fixados pelo Código e para fazer voar em estilhaços tudo o que possa limitar o consumo-trabalho. Esta reforma visa conduzir-nos a este paradoxo de enquadrar sem constrangimento, ou seja, em linguagem liberal, de desregulamentar o trabalho fazendo do emprego assalariado a variável de ajustamento do mercado do capital e do consumo para todos.

Michel Lhomme, politólogo, Revista Metamag, Março de 2016, Le nouveau droit du travail ou mutualiser la pauvreté.

Esta é a visão sobre o trajecto que Frankfurt tem vindo a impor, trajecto esse bem expresso por Draghi, por si, Vítor Constâncio,  por Jean-Claude Juncker para quem não pode haver alternativas democráticas aos tratados.  E foi o senhor secretário-geral de um Partido Socialista!

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[1] Para os leitores que queiram estudar este tema sugerimos a leitura de:

1. Economistas Aterrados – La loi El Khomri ou comment en finir avec le Code du travail – que será brevemente publicado em português no blog A Viagem dos Argonautas.

2. Anne Eydoux et Anne Fretel – Réformes du marché du travail. Des réformes contre l’emploi.

30 Janeiro de  2016 – Economistas Aterrados

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Para ler a Parte II desta crónica de Júlio Marques Mota, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, vá a:

ABRIL DE PORTAS MIL À LIBERDADE ABERTAS, ABRIL FILHO DE TODOS NÓS, ONDE ESTAS TU? – por JÚLIO MARQUES MOTA – II

 

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