Carta do Rio – 104 por Rachel Gutiérrez

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A indignação causada pela falta de mulheres no recém formado  governo provisório de Michel Temer levou a escritora feminista Rosiska Darcy de Oliveira, que pertence à ABL (Academia Brasileira de Letras) a lembrar uma boutade de Millôr Fernandes: “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. E a chamada para o artigo de Rosiska foi: Não houve entre cem milhões de mulheres uma única que merecesse a responsabilidade de um ministério. E eis a chamada de outro artigo escrito no mesmo sábado por duas importantes advogadas da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Gabriela Rollemberg e Carolina Petrarca: É preciso mudar. Lugar de mulher é na política.

Naturalmente, as maiores críticas vieram dos petistas que foram contra a admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, a primeira presidente mulher do Brasil que, por ironia, para seus 39 ministérios só nomeara 6  mulheres e nenhum negro, apesar dessa outra crítica que também fazem ao governo provisório tachado de ilegítimo e golpista.

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Aliás, é preciso lembrar que durante os cinco anos de governo da ora afastada presidente Dilma questões candentes como a da descriminalização do aborto, por exemplo, não foram resolvidas. E agora temos uma defensora dos Direitos Humanos, Flávia Piovesan, que será empossada como Secretária na próxima terça-feira, 24 de maio, e que, contrariando todo o conservadorismo de alguns componentes do novo governo, se diz claramente a favor da descriminalização.

E a propósito dessa polêmica questão do aborto, tomo a liberdade de citar a mim mesma na Dissertação de Mestrado em Filosofia, que apresentei ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e publiquei em livro em 1985 – há mais de 30 anos! – (in O Feminismo é um Humanismo): Ao optar pela interrupção de uma gravidez não desejada, acidental ou resultante de falha do contraceptivo, a mulher encontra-se, é verdade, numa ‘situação-limite’ como diriam os existencialistas. Mas a opção deve ser sua, pois é no seu corpo que a gestação ocorre, e essa ocorrência modifica a sua vida. Trata-se, portanto, da sua liberdade.

Diz agora Rosiska Darcy de Oliveira:

Tão grave quanto ignorar as dinâmicas que vertebram a democracia, como o fim da discriminação de gênero, (ao qual voltaremos adiante) é a ofensiva concertada dos setores mais conservadores da sociedade, de inspiração religiosa, que vem se fortalecendo no Congresso. Trazem uma pauta moralista que inclui o Estatuto do Nascituro, restringindo as causas de interrupção da gravidez previstas em lei, e o Estatuto da Família que desconhece as novas configurações familiares, a exemplo das famílias homoafetivas.

E eu já escrevia lá nos idos de 1985: O problema não se apresenta às mulheres que obedecem a princípios religiosos, ou que consideram a vida “sagrada”desde o momento da concepção. (…) Mas o movimento feminista (assim como a sociedade laica, eu acrescentaria agora) não é católico nem filiado a qualquer religião.  É um movimento político que defende a liberdade das mulheres, portanto, defende a liberdade de cada uma de escolher, de optar. Significativamente, a campanha pela liberalização do aborto, na França chamou-se Choisir (“escolher”).  

E é a propósito do direito de escolher que eu pergunto agora: quantas chances têm as mulheres, realmente, de escolher em nossa sociedade?Se as mulheres desejarem, por exemplo, participar da vida política, quantos partidos dominados tradicionalmente por homens abrem-lhes de fato espaço para que se candidatem à Câmara e ao Senado? Quantas mulheres podemos contar entre os nossos deputados e os nossos senadores? – As mulheres são mais da metade dos eleitores e ocupam menos de 10% das vagas no Congresso Nacional. E o que nos informa a última pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) é que “o número de mulheres chefes de família cresceu 79% em dez anos.(…) A despeito disso, a brasileira continua subempregada, ganhando em média 30% a menos do que os homens.”

A mulher continua a ser tratada como cidadã de segunda categoria. Não surpreende que na questão do aborto todos os ônus e as “culpas” recaiam sobre ela. Por isso temos insistido tanto sobre a necessidade da educação sexual desde a escola primária. Para que rapazes e moças, como parceiros dessa experiência tão rica da vida sejam orientados para, desde cedo, se comportarem como pessoas responsáveis por seus atos. Para tanto, a divulgação dos métodos contraceptivos e a distribuição gratuita de camisinhas (como se costuma fazer no Carnaval) deveria ser prática obrigatória dos municípios, dos estados e da federação. Quantas vezes já mencionei a tragédia da gravidez indesejada na adolescência?

Na nossa luta feminista, dizíamos: Ao mesmo tempo em que reivindicam o direito ao aborto, as mulheres, para preveni-lo ou evitá-lo, reivindicam o direito á contracepção, à educação sexual, à informação. (…)Reivindicar esses direitos é promover a maternidade consciente, responsável, isto é, livre.

Para a nova secretária dos Direitos Humanos (Flávia Piovesan), que é professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos na PUC de São Paulo, o tema (do aborto) deve ser tratado longe da esfera criminal. Disse em entrevista:

– É consenso que o aborto deve ser visto como caso de saúde pública e não como caso de polícia. É lamentável a morte de mulheres em razão da prática do aborto ilegal.

E no que diz respeito à homofobia, afirmou que ao ser convidada para assumir o posto, colocou como condição a liberdade para lutar contra a homofobia:

– Estou na área de Direitos Humanos há vinte anos, tenho as minhas posições consolidadas. Por uma coerência pessoal, não recuarei. (…) Uma das pautas prioritárias é o combate à discriminação por orientação sexual.

Como se estivessem pensando nessa digna defensora dos direitos humanos, as advogadas (Rollemberg e Petrarca) da OAB escreveram: Cada mulher é um espelho no qual outras se enxergam e veem uma série de oportunidades. É preciso não só representar bem, mas estimular o envolvimento das mulheres.    

E Rosiska Darcy de Oliveira encerrou com “chave-de-ouro” seu artigo ao dizer:

A sociedade brasileira que exigiu o fim da corrupção e decência na vida pública, que apoia a Lava Jato, aposta no futuro e quer viver em uma democracia real, enraizada em direitos e liberdades. Esse futuro não está à venda. Se viesse a ceder, o presidente perderia o apoio da sociedade verdadeira autora do pedido de impeachment da presidente Dilma e fonte maior da legitimidade de seu governo.

E que as mulheres possam ocupar os espaços a que têm direito.

 

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