PARA A HISTÓRIA DO TEATRO DE AMADORES – 3. CCR – CENTRO DE CULTURA E RECREIO DE FERREIRA DO ZÊZERE – – TEATRO DE FANTOCHES – por ANTÓNIO GOMES MARQUES

Será que Warren Buffett leu Lénine? - por António Gomes Marques

O título destas crónicas pode levar o leitor a pensar que o seu autor tem em preparação uma História do Teatro de Amadores em Portugal, o que não corresponde à verdade, embora essa ambição seja algo que gostaria de considerar.

Uma História do Teatro de Amadores implica uma disponibilidade de meios de que, confesso, não disponho. Essa História, absolutamente necessária, não exige apenas tempo, mas sobretudo obriga a uma disponibilidade de deslocação por todo o país, a milhares de entrevistas com antigos e actuais membros do teatro de amadores e a reunir uma quantidade incomensurável de documentação que me leva a pensar que se trata de um empreendimento que não pode deixar de envolver uma equipa completamente empenhada em tal objectivo. Depois, não sei se o mais importante mas, seguramente, o que poderá tornar possível a sua concretização, é o seu financiamento.

Assim, vamos deixando nestas crónicas alguns elementos, sem cuidar de os apresentar cronologicamente, que poderão servir, amanhã, a quem se sentir com condições para levar a bom porto tal empreendimento.

Feita esta introdução, passemos agora a uma vertente, pouco falada mas muito apreciada, e a que alguns dos grupos de teatro de amadores muito se dedicaram: o teatro de fantoches.

Um desses grupos foi o CCR – Centro de Cultura e Recreio da Ferreira do Zêzere, aproveitando para aqui reproduzir uma das suas criações colectivas, «Escola Velha – Escola Nova», publicada como suplemento do à BARCA, Boletim da APTA – Associação Portuguesa do Teatro de Amadores.

AGM, Portela (de Sacavém), 2016-05-24

TEATRO DE FANTOCHES

Capa de Teatro de Fantoches - II

ESCOLA VELHA – ESCOLA NOVA

Criação Colectiva do

CCR – Centro de Cultura e Recreio de Ferreira do Zêzere

Personagens:

Professora

Director-Geral

Miúdo 1

Miúdo 2

Miúdo 3

Miúdo 4

Avô

 

Para crianças ainda não muito crescidas, o que é dito conta pouco, contam sim o movimento e a cor. Assim, parece-nos necessário manter um diálogo constante entre os bonecos e as crianças, pedir-lhes sugestões, obrigá-las a dar opiniões, soluções enfim, introduzi-las cada instante dentro da história, caso contrário, as crianças perdem-se e a certa altura… já não estão lá (em espírito, claro).

 

 

                (No recreio. Cenário: a escola velha. As crianças brincam, fazem uma roda e cantam).

                (Chega a Professora. Bate as palmas).

PROFESSORA – Vamos, meninos! Já passaram os dez minutos de recreio, vamos trabalhar.

MIÚDO 1 – Oh, Sr.ª Professora, mas parece que mesmo agora viemos para o recreio!

MIÚDO 2 – Oh, Sr.ª Professora, não me apetece ir já lá para dentro! Está tão escuro, as janelas são tão pequeninas!

MIÚDO 3 – E os buracos que lá há? E as correntes de ar que passam pelas janelas partidas?!

MIÚDO 4 – Oh, Sr.ª Professora, não podemos ficar cá fora só mais um bocadinho? O Sol está tão bonito! Dentro da escola só há cadeiras partidas! Nem uma flor, nem uma coisa bonita!

PROFESSORA – Bem sei! Bem sei! Sei isso tão bem como vocês! Concordo que cá fora está mais agradável e, enquanto estiver bom tempo, até podemos trabalhar cá fora, melhor ainda do que dentro da escola!

MIÚDOS – Viva! Viva! Viva!

PROFESSORA – Calma! Calma! Não se esqueçam que quando chegar o Inverno não podemos estar aqui fora à chuva e ao frio!

MIÚDO 1 – Pois não, lá isso não podemos!

MIÚDO 2 – Mas com os buracos que há no tecto, lá dentro apanhamos chuva na mesma!

MIÚDO 3 – E frio!

PROFESSORA – Escutem lá, tenho uma ideia! Se nós convidássemos o Director-Geral a vir cá fazer uma visita à escola, ele via o estado em que ela se encontra e talvez nos desse uma escola boa onde pudéssemos trabalhar confortavelmente!

MIÚDO 4 – Era uma boa ideia, era! Podíamos experimentar!

PROFESSORA – Estão todos de acordo?

TODOS – Estamos sim, Sr.ª Professora.

PROFESSORA – Então esperem aí que eu vou telefonar-lhe.

                (Os miúdos ficam em cena a dançar e a cantar. A Professora sai.)

MIÚDOS – Vem aí o Director-Geral! Vem aí o Director-Geral!

                (Chega a Professora)

PROFESSORA – Meninos, o Sr. Director-Geral diz que vem já, o mais depressa possível. Agora, ponham-se em fila e ouçam-me com atenção. Quando o Sr. Director-Geral chegar, batam palmas, e quando eu fizer sinal vocês gritam: “Viva o Sr. Director-Geral”. Perceberam? Digam lá vocês para eu ver se entenderam.

MIÚDOS – Viva o Sr. Director-Geral!

PROFESSORA – Muito bem. Agora portem-se bem.

                (Chega o Director – Geral)

DIRECTOR-GERAL – Ora muito bom-dia. Mas que lindos meninos. E têm ar de inteligentes. Felicito-a, Sr.ª Professora, pelos seus alunos.

PROFESSORA – Muito obrigada, Sr. Director-Geral. Quero antes de mais nada transmitir-lhe os nossos agradecimentos por ter vindo visitar-nos, e dizer-lhe que nos sentimos muito honrados pela sua presença.

DIRECTOR-GERAL – Mas a honra é toda minha. Vir até ao povo. Ouvir os seus anseios. Tomar contacto com as suas necessidades, é para mim uma experiência riquíssima.

PROFESSORA – Sr. Director-Geral, nós até nos lembrámos que talvez o Sr. Director-Geral nos pudesse ajudar a arranjar uma escola nova pois esta já está muito arruinada e não conseguimos trabalhar lá dentro.

DIRECTOR-GERAL – Ah! A vossa linda escola? Onde se formam os futuros obreiros do Portugal de amanhã?

MIÚDO 1 – O Sr. Director-Geral diz isso porque ainda não lhe caiu chuva em cima por causa dos buracos que há no tecto.

PROFESSORA – Psiu!

DIRECTOR-GERAL – (engasgado) – Ahn. Ahn. Mas, por favor, deixe-os falar à vontade, exprimir o que lhes vai na alma.

MIÚDO 2 – Não é na alma, Sr. Director-Geral, é ali dentro da escola.

DIRECTOR-GERAL – (entusiasmado) – Isso! Isso! Contactar com as massas é a minha missão! Estou aqui para escutá-los! E vejo agora que a vossa escola está um… pouco… necessitada… mas, não se preocupem, pois a reconstrução das escolas está integrada no grande projecto de reurbanização nacional! Por isso não se preocupem! Não se preocupem! De qualquer forma eu prometo-lhes que o vosso caso será resolvido com a máxima urgência! Ou não seja eu o Director-Geral! O bom povo desta terra merece-o e merece-me. Tenho dito!

PROFESSORA – Viva o Sr. Director-Geral!

MIÚDOS – Viva! Viva! Viva!

(Passado algum tempo. Descem os fantoches. Na escola velha)

PROFESSORA – Meninos, preciso falar-lhes. Já passaram uns poucos de meses e nunca mais temos a escola nova que nos prometeram!

MIÚDO 1 – Sim, lá promessas temos nós!

MIÚDO 2 – E o pior é que já começou o Inverno!

MIÚDO 3 – O meu pai ontem até disse que o melhor era a gente não fazer conta com as promessas que nos fizeram!

PROFESSORA – Mas então o que é que vamos fazer?

MIÚDO 4 – Oh, Sr.ª Professora, porque é que não fazemos nós a escola? O meu avô disse que está pronto a ajudar o que for preciso!

PROFESSORA – É uma boa ideia! Construímos nós a escola, pois!

MIÚDO 1 – Viva! O meu pai também vai ajudar, tenho a certeza!

MIÚDO 2 – E o meu!

MIÚDO 3 – E o meu também!

PROFESSORA – Então, mãos à obra antes que comece a ser tarde!

MIÚDO 1 – O meu pai já disse que dava as telhas.

MIÚDO 2 – E o meu pai dá as madeiras.

MIÚDO 3 – O meu pai dá as tintas!

MIÚDO 4 – O meu avô ajuda a acarretar os materiais! Eu vou chamá-lo. (chama-o mesmo da cena) Av^! Oh avô!

AVÔ – O que é que queres, Joãozinho? Olá Sr.ª Professora, como está?

PROFESSORA – Vai-se indo, Sr. João! Seja bem-vindo!

MIÚDO 4 – Avô, vamos reconstruir a escola. Tu ajudas?

AVÔ – Ajudo, pois! Tudo o que for preciso, pois esta escola está uma miséria!

MIÚDO 1 – Então, vamos buscar os tijolos!

MIÚDO 2 – Eu vou buscar as madeiras.

MIÚDO 3 – Eu também ajudo a acarretar os tijolos.

MIÚDO 4 – E eu as madeiras!

PROFESSORA – E eu, o que é que eu faço?

MIÚDO 2 – Oh Professora, ajude aqui a segurar neste barrote! Ih pá, o pau é pesado!

PROFESSORA – (ajudando-o) – É pesado, é! Ui! Como pesa!

MIÚDO 3 – Ainda faltam muitos tijolos?

MIÚDO 1 – Olha, mesmo agora começámos!

AVÔ – Mas sempre vai ficar uma escola bem bonita!

                (Aqui na cena de construção, pode e deve improvisar-se. Entretanto, a pouco e pouco, os próprios bonecos vão subindo o cenário da Escola Nova)

PROFESSORA – Posso começar a pintar?

AVÔ – Pode, pode, Professora! Nós já a ajudamos!

MIÚDO 4 – Esta tinta é gira, não é?

MIÚDO 1 – Afinal, não custou nada a reconstruir a escola!

MIÚDO 2 – Nada! Nada! Parecia uma brincadeira!

PROFESSORA – E ficaram a saber que um tijolo mais um tijolo…

MIÚDOS – São dois tijolos

PROFESSORA – E dois tijolos mais dois tijolos…

MIÚDOS – São quatro tijolos!

AVÔ – Até eu, que não sabia ler nem escrever, fiquei a saber contar! Obrigado a todos! Até logo! (sai)

TODOS – Até logo! Até logo!

MIÚDO 1 – Oh Professora. E ainda ficámos a saber mais uma coisa!

PROFESSORA – O que foi?

MIÚDO 1 – Que os Srs. Directores-Gerais e etcetras precisam de ir para a escola pois não sabem geografia, senão não se esqueciam de fazer escolas novas em aldeias como a nossa!

(cantam todos)

TODOS – Viva a Escola Nova! Viva a Escola Nova!

                (enquanto eles dançam, a Professora sai. Quando volta, diz:)

PROFESSORA – Meninos, tenho uma coisa a dizer-lhes. Chegou agora um telegrama a avisar que o Sr. Director-Geral nos vem hoje fazer uma visita.

MIÚDO 1 – Ora esta, o que é que ele quererá?

MIÚDO 2 – Se calhar vem cá ver se a escola já caiu.

MIÚDO 3 – Bem podíamos esperar pela escola dele!

MIÚDO 4 – Oh Professora, a que horas é que ele vem?

PROFESSORA – Deve estar quase a chegar!

DIRECTOR-GERAL – (chega distribuindo sorrisos a torto e a direito) – Bom-dia! Bom-dia!

TODOS – Bom-dia!

DIRECTOR-GERAL – (vê a escola e fica surpreendido) – Mas… Mas… ! Mas que linda escola que vocês têm! Pelos vistos os vossos anseios foram ouvidos, não é verdade?

PROFESSORA – Creio que não, Sr. Director-Geral; não foram ouvidos.

DIRECTOR-GERAL – Não posso acreditar! Os meus olhos dizem-me que o vosso pedido respeitante à escola foi aceite!

MIÚDO 1 – A gente não sabe se o pedido foi aceite, Sr. Director-Geral! Sabemos é que a escola não veio!

DIRECTOR-GERAL – Mas… Mas… ! Mas eu vejo aqui uma esplêndida escola precisamente no local em que estava aquela escola arruinada que eu vi!

MIÚDO 2 – Pois vê! Mas fomos nós que a fizemos!

DIRECTOR-GERAL – Não posso acreditar!

MIÚDO 3 – Pois acredite! E o Sr. Sabe isso muito melhor que nós! Sabe perfeitamente que não recebemos nenhuma ajuda lá do SEU grande projecto de reurbanização nacional.

DIRECTOR-GERAL – Não é meu! Não é meu! É do respectivo departamento geral de reorganização nacional! Mas têm que compreender! O Governo está a atravessar uma grande crise! Temos pouco dinheiro, meus filhos!

Mas, Sr.ª Professora, como conseguiram o dinheiro para mandar fazer a escola?

PROFESSORA – Já lhe dissemos, Sr. Director-Geral, que não a mandámos construir; construímo-la nós!

DIRECTOR-GERAL – Ai… Ai… ! Ai, isto é o fim! Mas… nós? Quem nós? Quê nós? Quem é nós? Quem é quem? Nós é quem?

MIÚDO 1 – Nós é eu!

MIÚDO 2 – Mais eu!

MIÚDO 3 – Mais eu!

MIÚDO 4 – Mais eu!

MIÚDO 1 – Um menino, mais um menino, mais um menino, mais um menino, mais um avô, mais uma professora…

MIÚDO 2 – Isto dá 6 pessoas.

MIÚDO 3 – Com as outras ajudas dá quase a aldeia inteira!

DIRECTOR-GERAL – Oh Sr.ª Professora! Mas onde é que as crianças tiveram aulas durante este tempo todo?

PROFESSORA – Olhe, Sr. Director-Geral, tivemos aulas entre um tijolo e uma lata de tinta; entre uma ripa de madeira e um martelo; entre pregar um prego e carregar um saco de cimento.

DIRECTOR-GERAL – Mas isto é incrível! A Sr.ª Professora vai ser castigada! O Estado paga-lhe para ensinar e não para construir escolas.

PROFESSORA – O Estado paga-me para ensinar e não para fazer papagaios, que é o que o Sr. quer que eu faça destas crianças! Ensinar foi o que eu fiz. Ensinei que na escola tem que se aprender o valor do trabalho manual, e que o trabalho de um operário é tão importante como o de um advogado ou de um professor.

MIÚDO 4 – E mais importante que o de um Director-Geral!

DIRECTOR-GERAL – Silêncio! Pois fiquem sabendo que esta professora vai ser afastada desta escola. Não é para isto que ela cá está! Aposto que nem sabem quem foi o 1.º rei de Portugal!

MIÚDO 1 – (troça) – Sabemos pois, foi…

MIÚDO 2 – … o…

MIÚDO 3 – … Napoleão!

MIÚDOS – (riem-se todos)

DIRECTOR-GERAL – Isto é demais! Isto é demais! No próximo mês, esta professora vai ser substituída e vocês vão ter uma nova professora! Tenho dito!

PROFESSORA – Tem dito?

DIRECTOR-GERAL – Tenho dito!

MIÚDO 1 – (para os outros) – Tem dito!!

MIÚDO 2 – Fique sabendo, Sr. Director-Geral, que a professora fica enquanto ela quiser e enquanto nós quisermos.

MIÚDO 3 – Isso mesmo! Uma escola nova também é isto; também é sabermos quem e o que queremos.

MIÚDO 4 – Somos crianças mas não precisamos de Directores-Gerais que pensem e decidem por nós!

PROFESSORA – Aí tem, Sr. Director-Geral. Até foi bom não nos ter dado a escola, assim nós percebemos melhor que nenhum projecto de reurbanização nacional nos pode dar a escola nova! A Escola Nova não está nas paredes! Está em nós!

DIRECTOR-GERAL – Mas… Mas…!

TODOS – É isso mesmo!

                Escola Nova, Ideias Novas!

NARRADOR – e aqui têm como estes amiguinhos tiveram a escola Nova ainda antes de reconstruir a escola. A escola nova é afinal saber aproveitar todas as situações para se aprender novas coisas. Acarretar tijolos, acarretar paus ou pintar paredes, tudo isto deve fazer parte da Escola Nova que todos vamos construir, mesmo contra todos os directores-Gerais que possam aparecer.

 

FIM

 

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