GIRO DO HORIZONTE – O CRIME COMPENSA? – por Pedro de Pezarat Correia

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Em 2009, seis anos depois da invasão do Iraque pela coligação anglo-americana, o primeiro-ministro de sua Majestade, Gordon Brown, encarregou o conselheiro privado reformado da função pública, John Chilcot, de conduzir uma investigação sobre o envolvimento do Reino Unido nessa guerra, nomeadamente as razões que estiveram na base da decisão e a forma como foram conduzidas a operação e as ações subsequentes. Se foi longo o período que se arrastou até à deliberação para que se desencadeasse a investigação – a que não é estranho o facto de Blair ainda ter permanecido no poder até 2007 –, mais longo foi o que demorou até ser concluído e serem conhecidos os resultados do relatório Chilcot, sete anos. Foram treze anos, no total. O veredito é “demolidor”, “devastador”, segundo classificações da generalidade da imprensa. É arrasador para Blair, que era o diretamente visado, mas é-o também, por arrastamento, para os outros responsáveis, a equipa neoconservadora que então governava em Washington, George W. Bush e Dick Cheney na presidência e vice-presidência e Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz e na secretaria e subsecretaria de estado da defesa, e para os acólitos menores na Península Ibérica, José Maria Aznar, Durão Barroso e Paulo Portas.

O relatório Chilcot é importante por vir de onde vem, por institucionalizar uma denúncia que já era do conhecimento global e já pusera em evidência toda a hipocrisia política que esteve na base da invasão do Iraque em Março de 2003: decisão baseada em pressupostos falsos e preconceituosos, na manipulação de provas, na viciação das regras que devem presidir a um estudo de situação militar, deturpando e empolando deliberadamente fatores de análise e descurando a previsão das consequências. Todo o processo de decisão foi uma fraude grotesca. Denunciei-o em tempo (artigo “Equívocos de uma guerra” publicado na edição de Fevereiro de 2003 no Le Monde Diplomatique, nas vésperas da invasão) e só não o viu quem não quis. Bush e Blair sabiam que as provas não existiam, que não havia justificação para a agressão ao Iraque, recusaram explorar outras hipóteses alternativas. E rejeitaram levar o assunto ao Conselho de Segurança da ONU porque sabiam que aí não passaria. Bush e Blair queriam a guerra e desencadearam-na, contra tudo o que era prudentemente recomendável.

Foram trágicas, como era previsível e como estão à vista, as consequências que dela resultaram. Para o Iraque, obviamente, mas também para o Médio Oriente, para a Europa, para o Mundo em geral. Em vez da mudança em cadeia, favorável ao ocidente, do mosaico político do Médio Oriente, no Iraque, na Síria, no Irão, que a Casa Branca anunciara, foi o caos da violência diária que se instalou no Iraque, na Síria, na Líbia, a atração da Al Qaeda para as portas da Europa do sul, a promoção do Irão xiita a potência regional indispensável, a emergência do califado do Estado Islâmico. Nada disto é separável dos efeitos da guerra no Iraque. Tudo está suficientemente documentado e não vamos repeti-lo.

A retratação de Blair, passados 13 anos e perante o escândalo do relatório Chilcot, é patético. Blair lamenta o que correu mal, mas não a decisão, fingindo não ver que foi a decisão que esteve na base de tudo, que com aquela criminosa decisão nada podia correr bem. É isto que o relatório denuncia, ainda que não o diga expressamente.

Blair verte lágrimas de crocodilo pelo que correu mal mas não explica o que correu mal. Não pode, porque sabe que o que correu mal foi o convencimento imperial da dupla Bush/Blair e das suas entourages de que, com a avassaladora superioridade dissimétrica do seu potencial bélico, com os sofisticados meios de guerra eletrónica que neutralizariam desde a hora H as defesas antiaéreas iraquianas, as redes de comunicações e os sistemas de comando e controlo, com uma força aérea que asseguraria o absoluto domínio do ar, com os mísseis e drones a eliminarem sistematicamente alvos selecionados, a invasão terrestre seria um passeio militar e a vitória estaria assegurada em poucos dias. Desprezaram os ensinamentos das guerras modernas recentes, no Vietnam e no Afeganistão, em que a dissimetria geraria respostas assimétricas do mais fraco, que conhecia o terreno e contava com as populações, trazendo o combate para patamares em que a força só por si se revela inútil. A estratégia global da coligação no Iraque foi desastrosa, foi isso que correu mal e não fatores contingentes ou circunstanciais. O que correu mal foi que, para além dos equívocos e dos erros originais da decisão política, a incapacidade dos responsáveis da coligação só podia conduzir ao fracasso político e militar.

Há um Tribunal Internacional de Justiça adstrito à ONU, está em funcionamento e tem julgado crimes de guerra cometidos em conflitos recentes. Mas nenhum dos responsáveis pela calamidade do Iraque tem sido responsabilizado pelas violações, deliberadas, das regras do sistema internacional, nem judicial nem politicamente. Pelo contrário. Depois do falhanço do Iraque Blair foi escolhido pela ONU, UE, EUA e Rússia, pasme-se, para mediar a paz no Médio Oriente! Mais tarde presidiu ao Conselho Europeu para a tolerância e Recuperação! Bush, Cheney, Rumsfeld, Wolfowitz, nos EUA, tratam das suas vidas com proveito, sempre ligados aos setores mais reacionários. Aznar é íntimo e comparsa de Blair. Durão Barroso e Paulo Portas singraram na vida política na UE e em Portugal, demitem-se irrevogavelmente hoje para regressarem com estatutos mais elevados amanhã, saltam para os negócios privados sem denotarem qualquer preocupação por alimentarem suspeitas de percorreram trajetos que prepararam enquanto governantes.

E todos eles fazem conferências, provavelmente ensinam boas-maneiras e os segredos do êxito pessoal em política. E ganham muito, muito, muito dinheiro. O mal que se faz enquanto se passa pelo poder é, manifestamente, lucrativo.

Todos estes atores da vida pública têm contado com a cobertura e a cumplicidade generalizada de uma imprensa rendida aos encantos, ou aos benefícios, do neoliberalismo, que apoiou desavergonhadamente a invasão do Iraque e silenciou, submissa, os atropelos aos códigos da ética que devem reger o serviço público.

O PCP anunciou agora a intenção de chamar a declarações, no Parlamento, Durão Barroso e Paulo Portas. É uma iniciativa tardia, mas que dificilmente seria exequível enquanto PSD e CDS dispuseram de maioria na Assembleia da República. Por isso é uma iniciativa louvável. Que sirva, ao menos, para compensar a constatação, dolorosa mas incontornável para quem acredita na democracia de que, em política, o crime compensa.

11 de Julho de 2016

3 Comments

  1. Pergunto se os “acólitos menores” que são de produção nacional não devem – como merecem – ser levados à Justiça em vez de à Assembleia da República. Não é possível considerar que cometeram, apenas, um erro político antes sim, e com toda a objectividade, praticaram um crime e esse crime não pode entender-se como de feição meramente política mas sim, como deve ser, de lesa Humanidade. Os Portugueses não devem aceitar poder ficar associados à criminalidade internacional com que, dois deles, estiveram e estão comprometidos. CLV

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