HOMENAGEM A JOÃO CRAVINHO PELOS SEUS OITENTA ANOS – DE UMA CRISE A OUTRA, DA CRISE DOS ANOS DE 1930 NA ALEMANHA À CRISE DOS ANOS DA TROIKA — A EQUIVALÊNCIA NOS DISCURSOS POLÍTICOS, A EQUIVALÊNCIAS NAS POLÍTICAS ECONÓMICAS APLICADAS – V

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Selecção, tradução e montagem por Júlio Marques Mota

 

PARTE III: O plano Lautenbach[1]

 

Em 1931, em pleno coração dos anos Brüning, marcados por uma política deflacionista severa que levou a mais de 6 milhões e meio de desempregados, começou a haver vozes a reclamarem uma mudança de política económica, situação portanto equivalente à que se passa atualmente na Europa. Brüning permanecia insensível a estes protestos, uma vez que a sua preocupação máxima era reduzir o défice público e a dívida pública. Para além disso, considerava que a sua liberdade de ação estava muito limitada pelas condições impostas pelos países vencedores, os países aliados, que se apoiavam no plano Young. A preocupação de Brüning era pois de procurar compromissos que lhe permitissem escapar às decisões radicais que a resposta à situação de crise exigia. Mas no seio do aparelho de Estado havia já quem contestasse a política seguida. Entre eles estava Lautenbach.

Este era, como se disse, um alto funcionário do Estado. Defendia, como se mostrou acima, um relançamento da economia pelo crédito dito produtivo, aplicado ao investimento produtivo. E isto cinco anos antes de Keynes publicar a Teoria Geral. Lautenbach desenvolve nessa altura algumas ideias que serão mais tarde ideias centrais deste livro. Na sua esteira, os sindicatos também defendiam programas de apoio à economia de modo a poder resolver-se a enorme crise de emprego existente.

Lautenbach insistia na ideia da desintegração continuada da economia, que estaria a ser provocada pelas políticas de austeridade de Brüning, e da catástrofe social que daí iria resultar. A História provou a pertinência das suas análises. Insistia igualmente que seria necessário, no contexto que se vivia, o recurso a um forte endividamento público a curto prazo, a fim de utilizar estes créditos para dinamizar a atividade produtiva, com investimentos em infraestruturas, e assim restabelecer um funcionamento da economia que cedo ou tarde iria gerar as receitas orçamentais necessárias para equilibrar então as contas públicas. Em suma, Lautenbach defendia uma política completamente oposta à que estava a ser praticada. O que ele defendia era a aplicação da teoria keynesiana e num momento em que esta ainda, nesta matéria, não existia[2]! Como assinalou Jean-François Bouchard, entre outros, Lautenbach seria um Keynes avant la lettre e talvez mesmo mais keynesiano que o próprio Keynes. Com efeito, este último numa conferência dada em Hamburgo defende que “o problema número um é evitar uma crise financeira de grande amplitude. Já não é possível atingir um nível normal de produção num tempo razoável. Os nossos esforços devem ser canalizados para a realização de objetivos mais modestos. Pode-se impedir um afundamento total da estrutura financeira do capitalismo moderno? Ninguém pode negar que o problema mais urgente é o de impedir um colapso financeiro e não o de estimular a atividade industrial. A retoma na indústria virá depois”. Lautenbach defende este último ponto de vista contra o Keynes de então.

Um homem, vale a pena sublinhar, soube ler bem as teses de Lautenbach, e esse homem é o que Jean- François Bouchard chama de banqueiro do Diabo, Hjalmar Schacht, o futuro ministro da Economia de Hitler. Diz-nos este autor: “Quando Hjalmar Schacht leu a obra de Lautenbach compreendeu bem que as ideias deste autor visavam introduzir uma rutura na trajetória económica da Alemanha e que eram partilhadas por outros, em especial no Ministério da Economia. No momento oportuno este encontrará aliados no Ministério para levar por diante o seu plano de relançamento produtivo. Mas Hjalmar Schacht, ele mesmo, é um génio. As ideias de Keynes, de Lautenbach, ele irá pô-las em prática mas à Schacht, com génio” através da máquina do capitalismo de guerra que iria ser instalado neste país.

A grande oposição frontal a este o plano Lautenbach veio curiosamente da esquerda. A direita trabalhou a um outro nível, o da conspiração, levando à queda do general que queria pôr o plano em prática.

A ideia da intervenção estatal como forma de resolver as falhas de mercado foi gradualmente ganhando peso, ou seja, o Estado deve dar o impulso inicial que desencadeará uma trajetória de retoma da economia. Esta é pois a proposta desenvolvida por Lautenbach com o seu plano apresentado no ano de 1931. O posicionamento mais agressivo de oposição a esta tese não veio de um liberal mas sim de um marxista: Rudolf Hilferding, teórico do “capital financeiro”, duas vezes ministro das Finanças da República de Weimar, líder do Partido Social-Democrata (SPD). Os seus argumentos situam-se a dois níveis. A posição oficial do SPD é que o Estado não deve intervir para salvar o capitalismo, como ele diz, não deve ser “o médico ao pé do leito de morte do capitalismo”. A outra razão avançada por Hilferding era o medo que a criação de dinheiro pelo banco central fizesse gerar uma situação de hiperinflação. Não era fundamentalmente contra o “tratamento social do desemprego”, ao contrário de um liberal puro e duro como Friedrich von Hayek, mas ele não esperava grande coisa desse apoio ao desemprego. Ele defendia de toda a maneira que era necessário deixar ir a crise até ao fim e esgotar os seus efeitos.

Uma outra linha de oposição, dita moderada, ao texto de Lautenbach veio de dois dos mais brilhantes jovens economistas alemães, Wilhelm Röpke (1899-1966) e Walter Eucken (1891-1950). Estes apresentaram uma posição mais matizada. Eles serão ambos os teóricos do “Ordoliberalismo” (ou liberalismo organizado) que seria a fonte de inspiração da “economia social de mercado” na Alemanha federal, depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1931, pertenciam à família liberal, mas a crise levou-os a duvidar das virtudes exclusivas do mercado. Röpke distinguia entre dois tipos de crise económica: no caso de uma crise ligeira comum podemos confiar na regulação exercida pelas forças de mercado. No entanto, no caso excecional de uma espiral depressiva com consequências económicas, políticas e sociais inaceitáveis, pensar que o ajustamento poderia ser feito pelos mecanismos de mercado seria inapropriado. A intervenção do Estado para dar o impulso inicial é não apenas razoável, como necessária.

Röpke acreditava que, em 1931, a Alemanha se encontrava na situação de crise, porque uma “fadiga empresarial excecional” tornava essencial o investimento público, especialmente nos caminhos-de-ferro e nas estradas. Os seus amigos liberais ficaram indignados e rejeitaram fortemente esta tese. Os keynesianos satisfizeram-se com este ponto de vista mas demasiado cedo ainda, porque Röpke era hostil a uma intervenção permanente do Estado na vida económica e a investimento público por um período longo, por receio de consequências inflacionistas. Ele permaneceu até ao fim convencido que os princípios liberais eram exatamente os corretos mesmo se as circunstâncias excecionais exigissem o envolvimento do Estado.

No entanto, ele não foi capaz de resolver a questão fundamental, ou seja: quando é que a crise é considerada suficientemente forte para que o Estado deva substituir os mecanismos de mercado? A sua resposta não poderia servir como um guia para os políticos, porque ele remete para uma questão de bom senso e para a experiência dos responsáveis políticos.

A posição da direita é outra. Os altos quadros da direita — Schacht e os amigos anglo-americanos — reconheceram imediatamente que este “plano Lautenbach” era dinamite política. Em julho de 1932, a ala sindical do partido nazi apresentou-se às eleições com um programa económico de criação de emprego, que vagamente ecoa o conceito de Lautenbach. Alertado por Schacht, Hitler imediatamente ordenou a eliminação deste programa — embora esta reivindicação de aparente preocupação social tenha levado os nazis a ganharem muitos votos, tornando assim o partido mais forte.

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[1] Para uma leitura integral do plano Lautenbach, ver o Anexo 1.

[2] Segundo Hansjorg Klausinger: Em primeiro, Lautenbach discute — como Keynes em 1929 — dois tipos diferentes de processos associados aos efeitos secundários: por um lado, a difusão do emprego sobre as outras indústrias através de efeitos de arrasto e, por outro, a expansão da procura de bens de consumo pelos trabalhadores recém-empregados. Obviamente, o último efeito situa-se dentro do quadro teórico keynesiano do multiplicador. Em segundo, Lautenbach identifica o efeito do aumento da procura sobre os inventários como um incentivo para aumentar a produção, o que é, a propósito, mais parecido com o mecanismo de transmissão previsto por Hawtrey do que por Keynes na Teoria Geral (que depende do aumento dos preços, não dos inventários). E, em terceiro, Lautenbach analisa o processo do multiplicador não no âmbito da circulação de rendimento (com injeções e fugas), mas como um processo de expansão do crédito endógeno, ou seja, não em termos dos bens mas do crédito ou do mercado monetário.

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