O MAPA (A saga do anadel) – uma viagem nocturna/34 ~-por Carlos Loures

Lisboa, Prisão do Tronco, quinta-feira, 25 de Julho de 1487.

 

Decorreu quase uma semana no isolamento da cela do sobrado inferior da Prisão do Tronco. O tempo escoava-se penosamente entre cada actividade diária, parecendo os minutos horas, as horas dias, os dias meses. Uma quietude exasperante, sobretudo para quem tanto amava, a luz e o calor do Sol, o movimento, a acção, a vida, para o dizer numa palavra. («Postos em cativeiro, os lobos enlouquecem»), costumava dizer o bisavô Bartolomeu. Ali campeava, como besta negra à solta, a quietude putrefacta da morte. Numa das intermináveis manhãs, antes de ser servido o jantar, ou aquilo que passava por tal – uma escudela de sopa de mau sabor, um bebedor cheio de uma água de duvidosa pureza e um pedaço de pão de centeio, único alimento que se podia comer sem repugnância – teve a surpresa de ver entrar no cárcere o beleguim Diogo. Mas naquele isolamento, até a visita de uma serpente venenosa seria bem-vinda e preferível ao silêncio só cortado pelos ruídos carcerários – gritos de presos espancados por guardas ou por companheiros de cela, uivos de bêbedos e loucos, orações de frades que por ali iam confortar almas prestes a abandonar o cárcere da carne, ruído de chaves abrindo grades, das pontas metálicas das hastes das alabardas batendo nas lajes para repor o silêncio naquele império de podridão… Tudo isto lhe percorria os sentidos como um fétido hálito de loucura.

         Com a má vontade estampada no rosto, o meirinho informou-o de que o fidalgo ferido melhorara e de que, embora continuasse enfermo, já não estava em perigo de vida. Se sua senhoria não morresse, como se temera, as perspectivas de Lourenço, não sendo risonhas, seriam «um pouco» menos negras. Não seria acusado do crime de homezio, mas uma ofensa corporal tão grave feita a um fidalgo da casa real «não era feito que merecesse alvíssaras». Os digníssimos magistrados o diriam. E aventou um desagradável prognóstico: na melhor das hipóteses, não escaparia ao trabalho forçado, como remador a bordo de uma das naus que demandavam os mares, ou ao degredo, acarretando odres de água e partindo pedra numa feitoria da costa africana, onde os Portugueses construíam fortalezas militares protectoras das instalações comerciais. Afinal, não era impunemente, que se feria um fidalgo como o era o senhor conde de Cantanhede, membro do Conselho Real, amigo e criado de Sua Majestade. A visita constituía um mistério. Por que se incomodava tal personagem a vir transmitir-lhe este recado que, pese a carga de ruindade em que vinha embrulhado, lhe trazia alguma esperança? Mas, a história não ficou por ali. Diogo continuou o monólogo, dizendo que o fidalgo, que já estava consciente, exigira que o agressor sofresse um exemplar castigo. «Não é impunemente», insistia o beleguim, «que um insignificante besteiro trespassa o peito de um conde, servidor directo de Sua Majestade, el-rei D. João, que Deus o tenha sob a sua divina e sagrada protecção». E, num gesto de pia cristandade, benzeu-se, o maldito ogre.

         Escutou, como se estudasse as pedras da parede em frente, as boas e as más novas que o meirinho lhe trazia. Como se não estivesse a ouvir as palavras que aquele ser, que parecia saído das profundas do Inferno, vinha descarregar sobre o seu cativeiro. Não entendia os motivos que levavam o beleguim a querer mantê-lo informado. Talvez fosse um caso de maldade em estado puro, pensou. Apesar de parecer indiferente ao que ouvira, não deixava de ficar preocupado, sobretudo por saber o desgosto que iria causar a sua mãe, a sua tia Beatriz e a seu tio Antão. Para não falar de Débora que, como imaginava nos devaneios com que preenchia as horas, sofria, pelo menos um pouco, com o seu penar. Porém, as novidades não iriam ficar por aqui. Aquele era o dia de todos os prodígios.

*

Nessa noite, quando, embrulhado na capa, Lourenço já dormia a sono solto, pois apesar de se estar em pleno Verão, dentro da cela era sempre Inverno, foi acordado pelo ruído das grades a ser abertas. Entraram no cárcere homens embuçados e empunhando um deles uma tocha acesa. Não responderam às perguntas que foi fazendo, pretendendo saber, sobretudo, qual era o seu destino. Com rudeza, mandaram-no calar-se. Que se vestisse, se aprontasse e que os seguisse sem delongas. Quando, ao cabo de poucos minutos, compostas e sacudidas as amarrotadas roupas, alinhados os cabelos, colocado o capeirão, ficou pronto para a viagem, deixaram o cárcere e, percorrendo corredores e escadarias, saíram da prisão. Seguiram pelas ruas estreitas, desertas e mal iluminadas por esparsos archotes presos a suportes de ferro pelas esquinas, subindo as íngremes calçadas e ruelas que conduziam aos paços da Alcáçova. Supôs ir ser interrogado pelo seu superior máximo, o alcaide-mor ou por alguém da hierarquia militar. Coisa que, em sua opinião, deveria ter acontecido quando estava ainda no hospital, antes de ter sido entregue ao braço da justiça civil. Estranhava que pertencendo à guarnição não tivesse sido detido na prisão do castelejo, a «cadeia de riba», destinada a militares, cujos cárceres eram mais humanos do que os do Tronco. Estranhava o silêncio dos superiores. Não sabia que o alcaide-mor, na noite da prisão, exigira a sua transferência, logo que tratado, para a cadeia da alcaidaria. D. Nuno Soares esbarrara com a intransponível muralha das «ordens de Sua Majestade».

         A Alcáçova constituía o espaço envolto pelas muralhas do castelo de São Jorge e que compreendia, além do castelo muralhado, as torres, o castelejo central e as casas do Paço. Ali se situava, além das casas, onde residia o rei, as torres de Ulisses, a Torre Albarrã, que era a verdadeira memória do Reino, onde estava instalado o arquivo do Tombo, a Torre do Tesouro ou do Haver. Era o embrião a partir do qual a cidade crescera e se desenvolvera, um espaço que Lourenço bem conhecia. Não acertara na previsão de que iria ser interrogado pelo alcaide-mor ou por alguém em seu nome, pois chegados ao destino, entraram, não na alcaidaria, mas por uma porta lateral das casas do Paço. Como se já os esperassem, os alabardeiros que ladeavam a entrada dessa porta, abriram passagem ao cortejo constituído pelo preso e pelos seus guardiães. Percorreram extensos e estreitos corredores mal iluminados chegando, por fim, à zona nobre do palácio. Numa grande sala forrada de tapeçarias, altos tectos guarnecidos de travejamento, bem iluminada por velas, tochas e candeias, um homem de barba negra, ar austero, ainda jovem, vestido com simplicidade, estava junto de uma mesa rodeado por outros, em maioria mais velhos. Soldados, fidalgos, conselheiros, clérigos de purpuradas vestes… Lourenço estava na presença de el-rei D. João II.

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