A CRISE AUSTERITÁRIA E A QUADRATURA DO CÍRCULO – REFLEXÕES SOBRE A CRISE DA ECONOMIA, DO PENSAMENTO ECONÓMICO E DA DEMOCRACIA – TEXTOS DE REFERÊNCIA PARA ENTENDER A REALIDADE PRESENTE – B) BILL MITCHELL. 3. FLUXOS DE FUNDOS E SALDOS SECTORIAIS – I

 

Obrigado ao blog do tirloni.
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Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

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Fluxos de fundos e saldos sectoriais

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Bill Mitchell, Flow-of-funds and sectoral balances

Billy Blog, 24 de Novembro de 2015

 

Tenho observado alguns equívocos sobre a derivação, significado e aplicação do chamado quadro dos saldos sectoriais que é utilizado na teoria monetária Moderna (MMT) para ajudar a explicar a relação entre o sector público (governo) e os sectores não-governamentais. Parte dessa confusão parece ser o produto de um erro mais profundo quanto à diferença entre stocks e fluxos e as relações entre os fluxos na economia. Aqueles que concluem que este quadro é na verdade apenas uma estrutura de contas, de contabilidade, estão enganados. Da mesma forma, aqueles que concluem que as relações de contabilidade que fazem parte do quadro de saldos sectoriais são elas próprias questões de interpretação também não estão menos errados. Deve ficar claro que o quadro dos saldos sectoriais combina estruturas de contabilidade, que são derivados do quadro das contas nacionais utilizadas pelos estatísticos para medir a actividade económica, com proposições teóricas, que procuram explicar relações entre as variáveis com a utilização das estruturas da contabilidade. Por outras palavras, precisamos de entender tanto os aspectos contabilísticos que são por definição verdadeiros, como as estruturas teóricas subjacentes aos saldos.

Um leitor sugeriu que um assessor de Jeremy Corbyn tinha recusado em toda a linha o quadro dos saldos sectoriais porque não tem um conteúdo económico, como é evidenciado por este Tweet (October 29, 2015):

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I was also referred to a recent blog written by the senior economist at the British TUC – Fiscal fallacies (2): accounting identities and the case for government loan-expenditures

Eu também me refiro a um recente blog escrito pelo economista chefe do TUC britânico – Falácias Orçamentais (2): identidades contabilísticas e o caso das despesas públicas feitas através de empréstimos contraídos pelo governo – que aparece estar a defender o ponto de vista que o quadro dos saldos sectoriais fornece uma ” base para a política expansionista “.

Ambas as posições são inúteis.

Os antecedentes da abordagem dos fluxos de fundos

O quadro de contas e saldos sectoriais está intrinsecamente ligado à análise dos fluxos de fundos. Um dos primeiros expoentes da abordagem pelo fluxo de fundos, Lawrence Ritter escreveu em 1963 que:

O fluxo de fundos é um sistema de contabilidade social em que (a) a economia é dividida num dado número de sectores e (b) “uma determinação das fontes e das utilizações de fundos” é construída para cada setor. Quando todas as origens e utilização de fundos são colocados lado a lado, obtemos (c) a matriz de fluxo de fundos para a economia como um todo. Isto é em suma a substância da questão.

[Referência completa: Ritter, L. W. (1963) “Uma Exposição da estrutura do fluxo de fundos Contas”, The Journal of Finance, 18 (2), Maio, 219-230]

As contas de fluxo de fundos permitem-nos ligar o balanço de um sector (registos sobre stocks de riqueza financeira e real em termos líquidos) aos registos de rendimento (declarações sobre fluxos) de uma forma consistente. São pois estes fluxos que alimentam os stocks e os fluxos de fundos garantem que todas as transações monetárias são correctamente contabilizadas.

Esta abordagem sustentou o trabalho da chamada Nova Abordagem de Cambridge que fazia parte do grupo de política económica de Cambridge na universidade de Cambridge no princípio dos anos 70. Os principais membros deste grupo eram Martin Fetherston, Wynne Godley e Francis Cripps, que eram de uma matriz de pensamento basicamente keynesiana mas que abandonaram o quadro de pensamento keynesiano tradicional quando se levantaram questões relativas à balança de pagamentos. Mas deixemos estas questões para um outro dia.

Enquanto que a abordagem pelos saldos sectoriais começou a ser compreendida muito mais cedo (por exemplo, por Nicolas Kaldor e por outros), esta tornou‑se popular através da nova análise macroeconómica de Cambridge que introduziu o conceito da aquisição líquida de ativos financeiros do setor privado (net acquisition of financial assets of the private sector (NAFA) como muito importante no seu modelo keynesiano de rendimento- despesa.

Tal como Lawrence Ritter, os economistas de Cambridge consideraram interessante registar o fluxo de fundos entre os diferentes setores da economia, que dividiram em três setores:

  1. O sector público também chamado de sector governamental – que compreendia todos os níveis do governo e das suas instituições ou agências.

  2. O setor privado – que compreendia os agregados familiares e as empresas (e nestas estão incluídas os bancos).

  3. O setor externo – que compreendia todos os não residentes (os agregados familiares, empresas e governos).

De uma perspetiva da Moderna Teoria Moderna (MMT) as alíneas (2) e (3) representam o setor não-governamental.

Afinal, como todas as transações se processaram ao longo de todo o período considerado, qualquer um destes setores poderia registar um deficit ou um excedente financeiro. Um défice financeiro (excedente) é definido como uma situação onde o rendimento total é inferior (superior) às despesas do respetivo sector. .

Assim, no caso do setor privado, este está em excedente financeiro (défice ) quando o seu rendimento líquido é superior (é inferior ) à sua despesa em bens de consumo e/ou em bens do investimento.

O setor externo está em excedente (défice) quando o rendimento total das exportações é superior (inferior) aos pagamentos a efetuar pelas importações. O saldo externo inclui os chamados fluxos de rendimentos primários e secundários líquidos que se acrescem assim aos rendimentos dos residentes em consequência dos juros e dos dividendos recebidos devido à posse de activos sobre o exterior (dedução feita dos pagamentos similares feitos aos estrangeiros).

Quando o saldo da balança comercial se refere à diferença entre os rendimentos das exportações e das importações de produtos e serviços, a posição externa global do setor externo é equivalente à posição da Balança Corrente que inclui também os fluxos líquidos de rendimento.

O défice do setor governamental (excedente) surge pois quando a despesa pública total é maior do que (é menor que) o total das receitas dos impostos e de outros rendimentos.

A interpretação destes equilíbrios na Nova Abordagem de Cambridge, é que quando um setor particular tem um excedente financeiro (isto é, os seus rendimentos excedem as suas despesas) é-nos então permitido adicionar este valor aos seus ativos financeiros líquidos através das compras adicionais de novos ativos novos ou alternativamente reduzir as suas obrigações de dívida pendentes.

A MMT adota a mesma interpretação embora quando aplicado ao setor público à conclusão seja um tanto sem sentido a não ser dentro de um quadro contabilístico.

A expressão nova de Cambridge para o setor privado NAFA(p) é pois:

(1) NAFA (p) = Yd – (C + I)

onde Yd é rendimento interno líquido total do sector privado , que é o rendimento nacional total (Y) menos o total de impostos líquido de transferências (T); C é o total da despesa em consumo e I é a despesa total em bens de capital (investimento) total este que inclui a acumulação não intencional ou não desejada de existências, ou seja, I representa com este sentido o (investimento) interno do setor privado.

A expressão (1) é definida em termos dos fluxos em dólares do rendimento e da despesa.

Numa perspectiva de stocks , NAFA (p) é medido igualmente pela diferença entre o stock dos ativos financeiros líquidos no tempo t e o stock no momento T-1 do tempo, onde o T-1 é um qualquer período anterior tomado como referência (t é apenas um indicador de tempo, pode representar o momento atual e T-1 pode ser o ano passado).

Importante, as transações dentro do setor privado não alteram a posição financeira líquida global do setor. Por exemplo, se um banco cria um empréstimo para um dos seus clientes então os seus ativos aumentam mas no outro lado, as responsabilidades do cliente aumentam por um valor idêntico – o que não leva a nenhuma mudança global na posição líquida do setor.

A única maneira em que o setor privado pode internamente aumentar os seus ativos financeiros líquidos é com as transações feitas com o governo ou com o setor externo – por exemplo, adquirindo obrigações do Estado ou comprando obrigações sobre o Estado estrangeiro (ou títulos sobre o sector privado estrangeiro ).

Note-se, se nós agregamos o setor não-governamental então obtemos o resultado de referência da MMT em que as transações financeiras dentro do setor não-governamental não alteram a posição financeira líquida desse sector. Somente as trocas financeiras entre o governo e o setor não-governamental podem ser uma fonte para o aumento de ativos financeiros líquidos no setor não-governamental.

Uma vez que nós compreendemos a natureza interligada dos três sectores então é uma etapa bem simples perceber que se um setor melhorou a sua posição financeira líquida de ativos financeiros, isto é, se o sector em questão conseguiu um excedente financeiro, haverá pelo menos um outro setor que deve ter reduzido os seus ativos financeiros líquidos ou então que passou a estar numa situação de défice financeiro.

A estrutura dos fluxos de fundos permite que nós compreendamos que os fundos que um setor particular recebe durante um período a partir das suas receitas atuais ou empresta, vendendo ativos financeiros e reduzindo as suas reservas em caixa têm que ser iguais ao total das suas despesas atuais, em despesas em investimento, em reembolsos de dívidas pendentes, em empréstimos concedidos e em acumulação de saldos de tesouraria., ditos encaixes monetários.

Esta abordagem permite claramente que registemos as utilizações e as fontes dos fundos para cada setor.

Deve-se sublinhar que a abordagem dos fluxos de fundos assenta sobretudo em princípios contabilísticos e não tanto em considerar que se trata de uma estrutura (teórica) para compreender como os fluxos ocorrem. A este propósito não nos dá nenhuma informação sobre os processos de ajustamento que levam à mudança das posições financeiras líquidas em cada setor.

Isto não deve ser tomado como uma crítica a esta abordagem – é simplesmente uma observação. Igualmente não estamos a reduzir a utilidade e as informações que este tipo de abordagem nos permite obter. Frequentemente os economistas gostam de denegrir as análises que manipulam as identidades contabilísticas como se estas sejam de muito pouco significado. Mas qualquer abordagem é valiosa se nos fornece úteis quadros explicativos da realidade.

(continua)

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Ver o original em:

Flow-of-funds and sectoral balances

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