Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – O desastre Italiano por Perry Anderson VIII

Selecção de Júlio Marques Mota

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016

O desastre Italiano

Perry Anderson at the Frontiers of Thought conference, Porto Alegre, Brazil, 2013
Perry Anderson

Perry Anderson, The Italian Disaster, London Review of Books

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(conclusão)

Irá este veredicto significar que, tal como o seu antecessor, será deitado abaixo ? Uma tal hipótese pode parecer ingénua. Na Europa, os tribunais constitucionais são raramente surdos às exigências do governo em exercício – a maleabilidade do Bundesverfassungsgericht na Alemanha é bastante típica – e o italiano não o é nada. Dez dos seus quinze juízes são nomeações políticas directamente, com metade escolhida pelo Presidente e a outra metade pelo Parlamento. Para ter uma noção do efeito, é suficiente notar que a mais recente escolha de Napolitano foi um conselheiro de Craxi, Amato, enquanto o seu actual vice-presidente, Mazzella – escolhido pelo Parlamento sob o governo Berlusconi – foi proposto a Alfano, Berlusconi e a Letta durante um jantar privado, poucos meses antes do tribunal se ter pronunciar-se sobre o Lodo Alfano. Depois de atingir as listas partidárias bloqueadas pelo Porcellum, em Dezembro, quando o Tribunal publicou as razões da sua decisão em Janeiro este deixou aberto – ‘após consultas informais’ – a sua permissibilidade, apesar de tudo, em circunscrições menores. Três dias mais tarde, Renzi e Berlusconi, tendo questionado o Tribunal com antecedência, anunciaram o seu pacote com apenas essa pequena modificação do Porcellum nele contida.

As performances judiciais estão porém longe de serem peculiares à Itália. Na Grã-Bretanha, basta-nos só pensar nos casos de Denning, Widgery ou Hutton. Único, no entanto, é o espectáculo de um assembleia composta por deputados cujos lugares são devidos a uma legislação revogada como sendo um abuso inconstitucional sobre os direitos dos cidadãos e, apesar disto , não só continuarem a sentar-se e legislar imperturbavelmente, mas também a reescrever a própria Constituição. Nos anais do direito público, não se viu até agora nada que lhe seja comparável. Mas na Itália, o Tribunal Constitucional é imperturbável. Explicando que ‘a continuidade do Estado’ estaria em perigo se a ilegalidade do Porcellum pusesse em causa a legitimidade do Parlamento por ele eleito e, por isso apenas, o Tribunal já autorizou o Parlamento a mudar a Constituição. De acordo com a lógica de Alice no país das maravilhas, se amanhã um governo defraudasse as eleições fortemente ou proclamasse um estado de emergência suspendendo as liberdades civis, poderia estar errado, mas deve continuar em acção, pois caso contrário a existência contínua da República poderia estar em risco – a doutrina dos dois corpos do rei, o corpo político e o corpo natural, actualizada para os pós-modernos.

Durante a revolução de 1848, no alvorecer dos princípios da proporcionalidade democrática – o primeiro regime de representação política equitativa tinha sido proposto por um seguidor de Fourier dois anos antes – Lamartine sublinhou : “ as leis eleitorais são as dinastias da soberania nacional”. Rapidamente como se apontou, e profética, a analogia afirmava-se ser, ela não era para se saber. A dinastia que agora está a ser impingida ao povo da Itália é retrógrada mesmo entre seus pares: Bourbon da variedade napolitana, pode-se dizer. Mas o seu criador pode legitimamente exultar com isso. Sendo assim, o momento de que Renzi actualmente goza poderia ser protegido, mantido e guardado a sete cadeados e durar muito tempo.

Durante a noite, o Partido tornou-se numa falange largamente submissa atrás dele. Muito satisfeito consigo mesmo e desdenhoso dos outros para além do seu círculo florentino a que está muito ligado, Renzi, no entanto, promete alcançar para o PD um poder que este partido nunca tinha tido. O Partido nunca tinha encontrado um vencedor, e por agora as frondas seriam poucas. Os seus membros do governo eram politicamente pesos-leves, incapazes de o questionarem, sobretudo quando a função é colocar em realce a sua juventude e a sua paridade de género, assim como colocar a sua personalidade em relevo. A grande imprensa é-lhe favorável através das suas direcções, quando não são líricos nesse mesmo apoio. Mas este entusiasmo da imprensa faz lembrar a euforia dos media britânicos ao redor do precoce Blair, mas o contexto mudou. Então o neoliberalismo estava no seu pico mais alto de importância e de domínio, reinava na política, nas ideias, na economia. Hoje, a sua maré está ainda a subir, mas os cavalos brancos estão a desfazer-se e a exuberância desapareceu. Cameron e Clegg podem pressionar para além de Thatcher, mas não há nenhuma grande flutuação popular na sua agenda. Sob Hollande ou Rajoy, Kenny ou Passos Coelho, para não falar de Samaras, os cortes nas despesas públicas e a desregulamentação laboral podem continuar a prosseguir, mas num espírito de necessidade severa, e não de emancipação.

O estilo do Renzi não permite isso. A sua mensagem de esperança e de entusiasmo requer medidas que sejam algo mais do que sacrifícios, sejam algo mais do que andar a apertar ainda mais o cinto. Chegando ao poder por um golpe de estado no interior do Partido, sem um mandato popular, ele precisa de validação nas urnas, e as eleições europeias estão à porta. No passado, as variantes de centro-esquerda do neoliberalismo eram tipicamente compensatórias, oferecendo por um lado subsídios aos círculos eleitorais estratégicos para entorpecer o seu impacto social. Com a crise, diminuiu a margem para estas concessões. Para Renzi, é crítico que estas tenham de ser alargadas novamente. Os subsídios devem vir à frente, sem demora, antes dos eleitores se decepcionarem. Assim, o seu pacote de medidas sociais para a abertura combina legislação que torna muito mais fácil que os novos trabalhadores sejam despedidos e de tal modo que até mesmo The Economist levantou as suas sobrancelhas, com um folheto de oferta de €1000 em reduções fiscais para os menos bem pagos, descaradamente, apresentadas como uma prenda nas urnas.

Para pagar por estas e por outras despesas para induzir o crescimento, Renzi tem deixado claro que o espartilho do pacto fiscal terá de ser aliviado. A Itália, ele já informou Bruxelas, não pode ser tomada como um aluno a ser ensinado em frente ao quadro. Uma vez que os cálculos da Comissão Europeia, tal como os do Banco Central Europeu e não menos importante, como os do regime de Berlim – as três autoridades que importam – em última análise, são sempre mais políticos que técnicos, é susceptível de conseguir tomar o seu caminho. O zelo do Renzi pelas reformas estruturais pode ser confiável, o que não era assim com Berlusconi, então não há nenhuma razão para lhe dificultarem a vida por ter sido demasiado literal sobre o limite máximo admissível em termos de défice. As regras da UE, devem revelar-se inconvenientes, terão quer sensivelmente modificadas, não devem ser mecanicamente seguidas. Muito do mesmo se aplica para o governo de Manuel Valls em França, não menos ansiosamente saudado na imprensa de negócios e o FT num editorial local escrevia: “Os novos rapazes europeus sob aperto – Bruxelas deve considerar a hipóteses de orçamentos mais flexíveis para Valls e Renzi.” Até que ponto tais ajustes irão fornecer sangue vital para a economia italiana em termos de longo prazo é o que permanece por ser visto . Para o seu novo governante o que conta no curto prazo é o oxigénio eleitoral. No momento, Renzi tem todos os motivos para estar confiante.

O que é o inverno do Patriarca? Numa farsa típica da justiça italiana, a sua condenação por sonegação de impostos de vários milhões terminou com o procurador a dispensar qualquer hipótese de prisão domiciliária e o Tribunal – comovido pelos seus problemas de coração – atribuiu-lhe umas pesadas quatro horas por semana de serviços comunitários num lar de idosos perto do seu palácio em Arcore: exactamente o resultado necessário para mantê-lo na direcção do Renzusconi, que ele tinha ameaçado sabotar se qualquer punição pior lhe viesse a ser imposta – mas quem poderia suspeitar das regras da terra e numa linha que seja em face das autoridades legais ? Embora durante muito tempo tenha preservado a sua liberdade pessoal, Berlusconi enfrenta sanções muito mais fortes depois que a sua sentença em Junho passado de uma pena de prisão de sete anos por prostituição de menores se venha a tornar definitiva num tribunal superior, e é provável que a sua vida política esteja a chegar ao fim. E o seu partido, Forza Italia, já em posição baixa nas sondagens , vai afundar –se ainda mais, ou será capaz de capotar , deve já não ser capaz de aguentar o seu dia-a-dia. O nome dele, sendo o seu único verdadeiro activo, haverá então pressão no interior das suas fileiras para que um dos seus filhos o transporte no seu porta-estandarte. Um filho vagabundo é não apresentável. Das suas filhas, Berlusconi está muito mais perto da mais velha, Marina, filha do primeiro casamento, que é quem comanda Fininvest e Mondadori como partes do seu império. Mas ela vai talvez reformar-se e não mostra nenhum sinal significativo de querer pegar no bastão. Barbara, a sua filha do meio, de 29, trabalha no clube de futebol de Berlusconi, AC Milan. Ela é encantadora, extrovertida e tem fama de ser muito profunda. A mãe, Veronica Lario, agora profundamente distanciada do seu pai, teve o cuidado de a educar tão longe dele quanto possível e as relações entre eles são muito mais distantes. Menos popular do que a sua meia-irmã, ela tem mais apetência pela política. Oportunamente, uma entrada de Barbara Berlusconi na política não é inconcebível.

Os herdeiros biológicos serão, no entanto, a parte menos importante do legado histórico do Berlusconi. Durante os vinte anos da Segunda República, a Itália considerou este período, em algo como um equivalente peninsular do ‘período de estagnação’ na URSS. A corrupção quase que não diminuiu, e o país entrou em declínio económico e social. Os governos de Berlusconi foram piores do que os dos seus adversários, mas não por uma grande margem, uma vez que nem a esquerda deixou muito marca legislativa. A principal mudança do período veio com a entrada da Itália na União Monetária, sob Romano Prodi, mas isto era ambíguo, reduzindo os custos do país nos seus empréstimos, mas minando as suas exportações. Além disso, o livro está em grande parte em branco e uma vez que Berlusconi governou por um pouco mais de tempo que o centro-esquerda, a sua responsabilidade é então maior.

Mas seria errado concluir que ele não conseguiu nada, mesmo que no final nem sequer tenha a imunidade pela qual ele tinha entrado na política. A grande realização de Berlusconi foi transformar os seus adversários na sua própria imagem. A Itália tem desde há muito tempo uma tradição de ciência política de alta qualidade. No ano passado uma das suas melhores mentes, Mauro Calise, publicou um livro intitulado Fuorigioco – ‘fora de jogo’. Nele, o autor argumentou que a personalização da política não era um espectro anti-democrático, recordando as tentações de um desacreditado passado, o que a esquerda italiana durante muito tempo temia, mas a força hegemónica da lei em todas as democracias atlânticas salvou a Itália. Weber pensou que a liderança por património ou por carisma estava historicamente em declínio no Ocidente. Mas na verdade era a autoridade legal-racional que ele acreditava ser a característica das formas modernas da lei que estava ultrapassada . A vídeo-política recriou a liderança carismática. Isto não é um perigo. Actualmente, a macro-personalização do poder é pública, responsável e é criticável . Esta corresponde e responde a um mundo em que a comunicação já não é um instrumento de política, mas a sua essência e em que não há nenhuma razão para se ter medo. Porque a vídeo-política é auto-limitada, produzindo líderes que são ao mesmo tempo muito poderosos e muito frágeis – vulneráveis às sondagens de opinião e às urnas de voto. O que faz estes políticos subir também os pode fazer descer . A verdade é que essa macro-personalização não é uma antítese da democracia, mas a sua condição, num momento em que os partidos perderam a sua força. A esquerda italiana recusara-se a entender isto, associando erradamente a norma liberal de um ‘presidencialismo monocrático’ com as memórias do fascismo e em seguida estigmatizando a situação como berlusconismo. Recuando em introvertidas formas colectivas de liderança, sem qualquer carisma, tinha-se entregue o campo da competição relevante a Berlusconi, que nisso é um verdadeiro mestre.

Calise publicou o seu livro alguns meses antes de Renzi ter capturado o PD, e pode ser lido como notas programáticas de uma extrema lucidez para o que se iria verificar , com o centro-esquerda a ter encontrado um líder capaz de ganhar a Berlusconi no seu próprio campo. O que está na mesma categoria, naturalmente, no seu diagnóstico sanguíneo sobre as formas necessárias da vida democrática de hoje, é uma reflexão sobre a sua própria substância. A macro-personalização não é ideologicamente neutra. Para adoptar os termos de Calise, isto responde a um mundo em que as personalidades se tornam grotescamente ampliadas – Super Mario e o resto – como diferenças partidárias, e com isso as escolhas dos eleitores, pari passu, reduzem-se. Uma duradoura realização de Berlusconi, de que ele está consciente, é a de ter reproduzido em Renzi não simplesmente um estilo de liderança, mas uma marca da política comparável à dele próprio, tal como Thatcher o fez com Blair. É graças a ele, ele disse-o várias vezes, que Renzi tem virado do avesso o PD, enterrando de uma vez por todas qualquer vestígio de um passado socialista-comunista. É uma sua reivindicação legítima. Mas a Itália, que, desde a guerra, tem conhecido rebeliões mais políticas, de um tipo ou de outro, contra a ordem estabelecida do que qualquer outra sociedade europeia, não está ainda completamente curada de tudo isto . Enquanto Berlusconi e Renzi falavam entre eles, estavam ambos muito longe da sua boa forma . O M5S dificilmente escapa à etiologia de Calise, apesar destes não fazerem parte da vídeo-política. Grillo personifica o Movimento Cinco Estrelas, como o seu principal fundador que é bem mais vasto que a vida do seu fundador e líder. Um autocrata que não tolera nenhuma dissidência, ele também opera fora do Parlamento, mantendo dentro margens de liberdade muito estreitas aos seus seguidores e capaz de proceder à expulsão sumária daqueles que quebrem a disciplina; enquanto o número daqueles que votam on-line nas deliberações do movimento permanece pequeno, não mais de trinta mil aproximadamente. A grosseria de muitas das intervenções do Grillo tanto podem repelir como atrair; o mesmo se pode dizer quanto à sua indeterminação ideológica de grande parte do seu apelo, a permitir inflexões tanto para a direita como para esquerda. A sua geral – não é completamente invariável – recusa em fazer acordos com os outros partidos ou coligações também tem sido uma atitude auto-destrutiva. Estivesse ele disposto , depois do sucesso do M5S nas eleições do ano passado, para dar apoio externo a Bersani em troca de um acordo sobre a reforma política, hoje o Quirinale estaria livre de Napolitano e Renzi ainda estaria no Palazzo Vecchio e a Itália poderia ter evitado um Neo-Porcellum.

Se o que se pretende é sermos eficazes então o protesto exige o trabalho da inteligência, juntamente com a intransigência da vontade. Talvez Grillo, aprendendo com a experiência, venha a mostrar ser mais versado e versátil e menos comandante, no futuro, e o movimento que ele criou seja na verdade mais do que um redemoinho resultante da passagem de uma turbulência. Os italianos devem esperar que assim seja, pois com o desaparecimento de toda e qualquer esquerda significativa e para a qual não há nenhum substituto, o M5S não só pode também emergir como a única oposição de importância no país e com todas as suas falhas e paradoxos, como ainda representa o único esboço algures em toda a Europa de uma contra-força para todos aqueles a quem roubaram a democracia representativa. Felizmente, no meio de um deserto de conformismo nos media – com uma benevolência cínica, um senador de centro-esquerda descreveu em privado o jornal La Repubblica, o diário líder da Nação, como o ‘nosso Pravda’ – a Itália possui um só jornal, Il Fatto Quotidiano, fundado há quatro anos atrás por um grupo de jornalistas independentes, que não têm medo de ninguém e que quebram todos os tabus: um caso único de uma ponta do continente à outra. Geralmente amigável para com o M5S, Il Fatto é, porém, muitas vezes profundamente crítico deles também: simplesmente o que é necessário.

Falar do milagre italiano, actual na época de Fellini e da Vespa, é um tempo que há já muito tempo mudou para o seu oposto. Durante décadas, os italianos superaram os estrangeiros nos lamentos à volta do Desastre Italiano e, no máximo, alguns espíritos corajosos defenderam algumas bolsas redentoras da excelência, aqui e ali: na moda, os carros Ferrari, o Banco Central. Não há dúvida que o país ocupa um lugar especial no conjunto dos Estados da Europa ocidental de hoje. Mas isto é normalmente mal interpretado. A Itália não é um membro médio da União. Mas também não apresenta fortes desvios relativamente a qualquer padrão que se tome como referência e a que deve ser ajustado. Esta é uma frase consagrada para descrever a sua posição, muito usada dentro e fora do país, mas está errada. A Itália não é uma anomalia dentro da Europa. A Itália está muito mais perto de ser um concentrado da própria Europa.

http://www.lrb.co.uk/v36/n10/perry-anderson/the-italian-disaster

 

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – O desastre Italiano por Perry Anderson VII

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