Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016 – A grande reforma da pequena soberania

Selecção de Júlio Marques Mota

Uma tentativa de golpe de Estado moderno sob a égide da União Europeia na Itália a 4 de Dezembro de 2016

5. A grande reforma da pequena soberania

Alberto Burgio

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É hoje enorme a consciência do facto que “a Constituição neoliberal ” comporta um duplo processo de migração da soberania: da política à economia; dos Estados nacionais aos organismos transnacionais representantes dos poderes que articulam a dinâmica económica.

Esta síntese sumária é suficiente para nos dar conta do problema mais sério gerado tela radicalização neoliberal ao longo destes últimos 30-35 anos. A reorganização da soberania coincidiu com uma descida na sua qualidade, dado que os poderes económicos recompensados são constitucionalmente eliminados da necessidade de controlo democrático. Independentemente da sua configuração (não se trata somente de grandes empresas industriais e financeiras ou dos grandes investidores, mas mesmo de instituições habilitadas a interagirem com os Estados e a produzir regras que para estes serão vinculativas), são poderes privados, naturalmente vocacionados a disputar parte de soberania pública. De modo que possamos acrescentar um terceiro fenómeno ao dois indicados em abertura. A Constituição neoliberal veio mesmo realizar uma passagem da soberania do público para o privado: um processo de privatização da soberania que contamina a própria esfera político-institucional, expondo-a sempre a uma cada vez maior penetração por parte de poderes e interesses particulares.

Se isto é verdade, podemos sem nenhuma dúvida afirmar que entre neoliberalismo e democracia subsiste uma tensão irredutível, que se refere ainda à vertente da capacidade crítica e da resistência dos corpos sociais. Dissemos que a consciência dos efeitos perversos da metamorfose da soberania é hoje enorme. Embora não seja muito difundida. É hoje património daqueles que no passado teríamos definido “vanguardas de classe” e em anos mais próximos tinham dado origem à criação de “ movimentos de vanguarda ”, embora pareça irrealista atribuí-la, essa consciência, ao conjunto da cidadania. A grande maioria dos cidadãos está investida no processo, do qual sofre os seus múltiplos efeitos, mas de que não está criticamente advertida. Isto, por diversas razões, e não a última — no que se refere em especial a um país como o nosso, tradicionalmente provincial — há o hábito de considerar o domínio nacional como sendo o único politicamente relevante.

Deste ponto de vista as últimas declarações do presidente do BCE poderiam marcar um momento decisivo e resultarem, paradoxalmente, efeitos progressistas. Na quinta-feira passada, por ocasião da conferência-imprensa mensal, Mario Draghi pôs, como se costuma dizer, a pata na poça. Não se limitou a utilizar palavras de incentivo ou de elogio no que diz respeito às sempre presentes “reformas estruturais” — sempre presentes desde há décadas na agenda dos países membros da União e na retórica de apoio à grande transformação neoliberal. Não se satisfez em ameaçar o commissariamento dos Estados por parte das instituições comunitárias — um commissariamento em larga medida já público, para legitimar que as Constituições nacionais “sejam reformadas” de forma a pôr de lado as assembleias eleitas e conferir centralidade aos poderes executivos, interlocutores privilegiados da tecnocracia. Draghi por fim decidiu chamar as coisas pelo seu nome, invocando um processo reformador definido em sede europeia e imposto sem ulteriores mediações aos Estados mais “atrasados” ou recalcitrantes. A ideia é esta “a de uma revolução a partir do topo do sistema ”, imposta depois à cidadania sem que esta tenha tido nenhum papel ativo.

Em qual sentido a proclamação do grande governador poderia ter imprevistos efeitos progressistas? No sentido que se trata de um manifesto totalmente radical a favorecer, pelo menos potencialmente, uma tomada de consciência generalizada do processo em curso. Se um elemento há que até aqui tem facilitado a regressão oligárquica das democracias ocidentais, este foi o caráter informal ou esotérico de transformações que se realizaram através de ajustamentos sub-reptícios das regulamentações e da prática ou melhor, nas passagens tópicas, pela reescritura dos Tratados. Agora, a afirmação de Draghi poderia marcar uma inversão de tendência no sentido da publicidade do processo.

O alcance das consequências do que foi manifestado pelo Presidente do BCE é tal (Estados deveriam em suma desembaraçar, transformar-se em estruturas administrativas subordinadas e talvez renunciar a processos eleitorais sempre cada vez mais semelhantes a rituais sem sentido, vazios) que, em linha de princípio, estas não deveriam poder deixar de ser discutidas em sede pública. Mas é aqui evidentemente que está a dificuldade e, digamos, estamos mais que certos do facto, apesar da sua enormidade, que as palavras do presidente do BCE não suscitarão nenhum debate sério público. Não porque não sejam escutadas, nada disso. Estas reforçarão e acelerarão a dinâmica de centralização da soberania nas mãos dos tecnocratas europeus (e em paralelo farão o esvaziamento dos corpos sociais). Mas isso dar-se-á sem estar a provocar nenhuma tomada reação no plano da consciência, do julgamento critico e da prática coletiva

Nada sobre este plano se irá produzir pelo simples facto que a opinião pública rarefez-se progressivamente até ao ponto de perder consistência e a coincidir de facto com os mesmos poderes privados que dela representam o simulacro sobre o terreno mediático. Mesmo a opinião pública foi privatizada ao longo das últimas décadas, a par e passo com o controlo sempre mais eficaz “dos aparelhos ideológicos” por parte dos potentados financeiros (e com a reorganização do eleitorado dos grandes partidos em sectores de opinião esquerda-direita). Neste período de tempo, verificou-se um processo de despolitização de massas (é esta a verdade do aparente recusa da política por parte dos corpos sociais) funcional na sua perda de emancipação. Um processo que torna atual a clássica representação da cidadania como “uma multidão de crianças ” a precisarem de tutores.

Deste ponto de vista mesmo os acontecimentos políticos italianos destas semanas revelam um perfil diferente do habitualmente observado. Temos várias vezes insistido sobre o regresso como característica da ação governamental e não será por caso que isso se dá em paralelo com o densificar da opacidade em redor da decisão dos grupos dominantes. O pacto secreto rubricado por Renzi e Berlusconi em torno de dois eixos da organização democrática do país (a Constituição e a lei eleitoral) é o símbolo mais eloquente de um fenómeno. Mas é precisamente apenas um símbolo. A insígnia do segredo estende-se agora por toda a ação dos governos pós democratas, a começar pela gestão reacionária da crise económica até às medidas funcionais de redistribuição a favor das famílias de rendimentos mais altos e da sistemática destruição dos sistemas de proteção conquistados pelo movimento operário em mais de 150 anos de lutas sangrentas.

Dito isto, não está escrito em nenhum lado que somos obrigados a sofrer passiva e tacitamente um tal estado de coisas. Podemos, pelo contrário, e devemos nós mesmos insurgirmo-nos para contrariar uma tal situação, começando com o refazer tenazmente a nossa teia do pensamento crítico com o fim de generalizar a consciência do processo em curso: de fazer da consciência de classe o primeiro e fundamental bem comum. Mas para que isto se verifique parece indispensável que, para além dos esforços individuais de cada um de nós, venha a ser reconstituída por fim uma força crítica em condições de fazer-se valer na batalha de ideias e de conquistar uma vasta audiência na comparação político-ideológica.

A dominação oligárquica da sociedade através do secretismo é possível porque não há mais — em Itália pelo menos de há vinte anos até agora — nenhuma dialética política entre os interesses sociais fundamentais, porque o interesse dos subalternos do sistema é desprovido de vozes que os defendam, é excluído do conflito político. A luta pela democracia passa, por conseguinte, necessariamente pela reconstrução de uma subjetividade capaz de fazer de modo que a leitura crítica da realidade volte a ser património comum do corpo social, e de voltar a dar eficácia política ao ponto de vista da classe trabalhadora.

 

Alberto Burgio, LA GRANDE RIFORMA DELLA PICCOLA SOVRANITA, texto publicado por Il Manifesto, disponível em: ‘

http://fondazionepintor.net/costituzione/burgio/piccolasovranit%C3%A0/

 

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