A CRISE DA FINANÇA – O CASO ITALIANO – 5. SOBRE OS CÃES DA MINHA INFÂNCIA, SOBRE OS CÃES DA MINHA VELHICE: UM OLHAR CRÍTICO. – UMA VERSÃO ATUALIZADA COM ALGUNS DADOS RECENTES DA ITÁLIA – por JÚLIO MARQUES MOTA

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Sobre os cães da minha infância, sobre os cães da minha velhice: um olhar crítico.

Uma versão atualizada com alguns dados recentes da Itália

 

Júlio Marques Mota

Quando era pequeno, o meu pai tinha dois cães, um basset alemão, baixo  e esguio, fino que nem um alho mas de muita pouca força e, como era baixo, tinha um horizonte visual do campo mais limitado, sempre amigo mas sempre com cara de pouco insatisfeito, e um outro enorme, de pé tinha a minha altura, setter de base e de perdigueiro cruzado, de pêlo de  várias cores bem malhado, não menos esperto que o anterior mas muito mais rápido que este, de Foguete até chamado. Dois cães que foram para a caça muito bem ensinados, muito bem treinados. Eram dois exemplares de verdadeira estimação. O perdigueiro então, houvesse alguém que pela calada da noite se aproximasse da porta de casa e era garantido que a perna apertada levava primeiro. Cães amigos que iam caçar em linha, que conheciam os caçadores que com o meu pai caçavam e as peças   de caça a eles lhas entregavam. De manhã, um deles de Abel chamado,  a minha casa queria as cartas do correio levar, mas de carteiro fardado, era impossível, o  cão que ontem as  peças de caça lhe entregava, hoje não o conhecia sequer.

Mas os dois cães também sabiam pisar o risco e com que elegância. Num dia apanharam um coelho todo esfacelado, agarraram-no, deram-no ao caçador, mas sentiram o gosto do sangue. Quando podiam,  quando ninguém pudesse dar por isso, ei-los que iam sozinhos à caça, à procura do sangue, como os ladrões de ontem à procura do dinheiro. E com que elegância o faziam. O cão grande batia a caça, batia todo o terreno, todo ele era explorável. O cão pequeno, o basset,  esperava-a, apanhava-a. Como a repartiam, não sei. Poucas caçadas faziam pois poucas oportunidades para isso tinham.

Era assim na casa de gente pobre onde os animais eram bem ensinados e bem tratados. Um dia, o meu pai que presuntos arranjava, cuidava, curava, percebeu que um deles tinha sido atacado  por mosca varejeira. Solução: presunto para o cão, de setter cruzado e de pêlo de  várias cores  bem malhado, fatia a fatia, o cão cada uma delas comia. Impressionou-me a cena: a partir do meio do presunto, o cão comia por um lado e tudo largava triturado por outro, pelo rabo,  e tudo fazia ao mesmo tempo. A avidez possuía‑o.  E o presunto assim se foi.  O cão basset  alemão com algumas fatias apenas  se bem contentou!

A minha mãe que de letras e de números nada sabia  mas que enganos  de contas a  ninguém consentia,  virou-se para o meu pai e ameaçou-o: ou o cão ou comida em casa. A comida não abunda, é simples. A escolha é tua.

Com tristeza desse cão o meu pai se desfez, desse cão que ele também controlava. Disso até eu  tive pena.

Um dia, quando em casa doente estava, decidi ir caçar com ele. Eu havia de aprender . Este cão levei, e era um espectáculo vê-lo a sentir o cheiro de perdiz, era um espectáculo, sentir o cão a caminhar pé ante pé, cabeça toda   para a frente atirada e, de repente, a cabeça para um dos lados voltada. Perdido na estética deste espectáculo que nunca tinha visto, parado fiquei a  olhar quando de repente duas perdizes fiquei a ver voar. E do outro lado,  com o ar de espanto o cão não correu para as perdizes, não,  o cão parado  para mim ficou a olhar e a perguntar, se pudesse, se soubesse, mas então para que serve a espingarda?

Esse  cão foi dado, foi para os lados de Cacém um bom cão de guarda foi e mais tarde soubemos que morreu, porque saltou a rede para perseguir ou alcançar um inimigo que não conhecia. E morreu atropelado. Já não era nosso, mas ficámos tristes.

Vem esta história a propósito da banca. Regulado, o conjunto dos bancos, o sistema bancário, é um sector de uma importância inestimável, como o meu cão, de raça setter de perdigueiro cruzado e de pelo de  várias cores  bem malhado, era muito útil na caça quando as regras  cumpria e sabia-as cumprir bem, muito bem mesmo,  mas este sector se desregulado, é como o meu cão de presunto de alta qualidade nunca saciado.  A ganância impede os agentes deste sector de verem os  limites  dos lucros a acumular e em qualquer paraíso fiscal depois ficam a guardar.  Se ficam com aliados ao seu dispor, os governos ao seu serviço como Passos Coelho, como Zapatero, como Sarkozy e muitos outros o têm mostrado bem, a ganância já de si potencialmente enorme torna-se na verdade ilimitada e  a sua ganância vai  muito para além dos limites de tudo o que se considerava  inultrapassável  no nosso tempo, para procurarmos alguma analogia com uma conhecida expressão de Sartre .

A sociedade de hoje não tem nada a ver com o espaço, com as regras, com o modo de viver e pensar das gentes da minha aldeia de então qualquer que fosse o país de referência  pois  agora é tudo global, nada é local, excepto a pobreza que disso fica. Por outro lado, os cães como o meu setter de perdigueiro cruzado e de pêlo de  várias cores  bem malhado não são ensinados ou treinados para as regras cumprir, ao contrário são condicionados  para nenhum limite admitir. Esses cães, de ganância ilimitada, são os equivalentes dos nossos grandes operadores dos mercados financeiros, os Paulson de hoje, eleito o empresário do ano por ser o que mais ganhou num ano com os subprimes,  os Wendelin Wiedeking europeus   que fazem passar as acções Volswagen de 200 euros para mil euros em dois dias: A verdade é que  esses senhores são como o meu perdigueiro de setter cruzado ( ou antes ao contrário)  e de pêlo de várias cores bem malhado,  nunca estão satisfeitos se para isso não os condicionarmos, mas à mínima oportunidade, aí estão eles a mostrarem -se disponíveis para tudo devorar de tudo o que estivermos a ganhar.

E estão a fazê-lo, bem protegidos  pelos equivalentes dos pequenos bassets alemães ou de cães mais pequenos ainda que com pouca coisa  dessa voragem ficam satisfeitos, pois satisfeitos já estão de ao seu serviço poderem estar. E como os nossos dois cães que uma vez  retornados ao estado selvagem, o perdigueiro de setter cruzado e de pêlo de várias cores  bem malhado, com o basset acompanhado, podem fazer estragos devastadores, irrecuperáveis mesmo à esfera local onde cada um opere, assim se passa agora o mesmo com o sistema financeiro. É o que está a acontecer em Portugal, agora mesmo. È tempo de os ensinarmos, é tempo de os reeducarmos, é tempo de os condicionarmos, é  tempo,   e é urgente que o façamos, que os ensinemos a comer apenas o que for a contrapartida do que lhes dermos a fazer. Isso é que mercado, o resto é roubo.  Se o não fizermos, corremos o risco de tudo o que temos vir a ser por eles roubado. Sabendo  que um terço do serviço da dívida soberana do nosso país significa o drama que se esta a passar,  dadas as taxas de juro que nos tiveram a fabricar, pensar então que nada disto tem  a ver com o meu perdigueiro, de setter cruzado   e de pêlo de várias cores bem malhado, pelo pequeno basset acompanhado, retornado ambos  ao estado selvagem, pensar que uma coisa não tem nada a ver  uma com outra,  é pensar que cada um de nós de tudo o que é vida condigna deve  então abdicar. Eu não, disposto a abdicar  isso não estou.

Um olhar para os equivalentes  modernos dos cães da minha terra e da minha infância,  de raça setter e de perdigueiro cruzados, de pêlo de várias cores bem malhado,  com dados ainda relativamente recentes. Olhamos  e só podemos afirmar: os comentários são inúteis!:

No dia 17 de Setembro: um empréstimo de 85 mil milhões de euros feito pela Federal Reserve americana, à seguradora AIG em situação de  falência.

De  24 a 28 de Setembro, os dirigentes da  referida empresa de seguros realizam um seminário  num complexo luxuoso de Califórnia, St-Regis de Monarch Beach, por um montante de 443.343, 71 dólares, dos  quais quase 200.000 foram  para pagar  os quartos  (a 1.000 dólares a noite ou mesmo mais), e mais de 150.000 dólares para as refeições, assim como  23.000 dólares “de cuidados  estéticos”,  segundo o  democrata americano Henry Waxman, ao expressar-se numa audição na comissão da transparência e da reforma do governo da Câmara dos Representantes.

Outubro: o FED acrescenta 40 mil milhões de euros, porque os 85 mil milhões anteriormente concedidos  não são suficientes

6  Outubro : 6 mil milhões de euros gastos pelo estado francês para “salvar” o banco DEXIA .

9 Outubro : jantar no Hotel Paris de Mónaco, na sala Império , para  os membros do “Comité de Direcção e quadros superiores”. Custo : 200000 euros.

10 de Outubro: os dirigentes do banco Fortis , também ele salvo pelos fundos públicos, ofereceu-se  a si- mesmo e na mesma cidade e no  mesmo hotel que os precedentes – um almoço a  3000 euros por pessoa. Montante total: 150.000 euros

Em 2007, Lloyd Blankfein, Presidente do banco Goldman Sachs ganhou, no total, 53,5 milhões de dólares (40 milhões de euros), James Dimon, proprietário de JP Morgan Chase , 30,4 milhões de dólares, e Kenneth Lewis, de Bank of  América, 16,4 milhões de dólares.

Richard. Fuld, PRESIDENTE de Lehman Brothers, tinha uma remuneração anual de 72 milhões de dólares.

700 mil milhões de dólares nos Estados Unidos e cerca de 1.700 mil milhões de euros foram prometidos pelos governos europeus para salvar os bancos…

A ONG “Acção contra a fome” indica que com 3 mil milhões de euros por ano, poder-se-iam  tratar os  cerca de 19 milhões de crianças que sofrem de desnutrição aguda severa e que estão  potencialmente em perigo de morte.

De acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação) 30 mil milhões de dólares por ano seriam suficientes para assegurar a segurança alimentar do planeta.

Segundo o Le Monde  “os dirigentes  das grandes empresas americanas teriam ganho  nestes três últimos anos cerca de 95 mil milhões de dólares de remunerações…

Na carta aberta de Mira Amaral publicitada ontem pode-se ler:

“Infelizmente, a minha  reforma não é de 18 000 euros  como diz mas  sim de 11 000 euros.  Se não tivesse  ido para a CGD, ter!me!ia reformado como Administrador do BPI com 10 000 euros, apenas menos  1  000  euros!   Como  vê,  fui  mais  uma  vítima  duma  especulação  e  de  uma  pulhice inqualificável desse senhor Bagão Félix. (…)

Ao  contrário do  que o  inqualificável pulha Bagão  Félix diz,  a minha  reforma, pelos  factos que  lhe expliquei, não é pornográfica mas serão pornográficas duas situações de dois amigos dele:

A do  jovem Paulo Teixeira Pinto que se reformou do BCP aos 49 anos com cerca de 35 000 euros mês  (!)  tendo  recebido  de  indemnização,  ao  que  dizem,  10 milhões  de  euros.  Só conheceu a banca depois do governo…   A de Vítor Martins, amigo do Bagão  Félix que este  colocou  como Presidente da CGD,  sem nunca antes ter trabalhado num banco, e que saiu de lá ao fim de um ano com 900 mil euros de indemnização, como o DN noticiou na altura!”

Para não falar do BPN, para não falar das mais-valias através dele ganhas, para não falar  dos milhares de  milhões de euros  concedidas pelo Governo português  à banca  sem que até aqui nada de significativo lhes tenha sido pedido,  para não falar dos direitos que de que os senhores ligados ao poder se reclamam por estarem na lei quando passam a vida a eliminar na lei os direitos dos outros.

É simples, tudo isto.. Entre os cães de caça da minha infância e os seus equivalentes no mundo real de hoje, como se vê acima, claramente prefiro os primeiros, o mesmo é dizer que  entre o regime de relações económicas internacionais saído de Bretton Woods, em 1944,  com os seus mecanismos de regulação e o regime de hiperglobalização de hoje, e nada mais,  com as suas lógicas de desregulação aceleradas pela OMC, também aqui, claramente prefiro o primeiro regime. È também neste sentido que se insere o texto admirável de François Morin anteriormente apresentado.   É tudo.

Coimbra,xxxx  de xxx de xxxxx

Júlio Marques Mota

 

Deixemos os cães da minha infância, deixemos também os jogadores de António Costa, a justificação dos ordenados feita por Mário Centeno, tomemo-los pelo que  são estes banqueiros, homens de exceção, que merecem leis de exceção como se mostrou com a Caixa, que podem pois ganhar ordenados de exceção.

Veja-se agora o exemplo dos ordenados em Itália com a banca italiana praticamente toda ela falida:

Retribuzioni, azioni, buonuscite e bonus

ROBERTO NICASTRO FEDERICO GHIZZONI SAMUELE SORATO

caes-i

caes-ii

  • Moncler 000  24           Miro Fiordi ad e dg Credito   1.224.749 TOTALE 1.976.722                 Valtellinese

Nota: (1) bilancio al 30 giugno 2015.(2) bilancio al 31 gennaio 2016.

Legenda: p=presidente, ad=amministratore delegato, dg=direttore generale, vdg=vicedirettore generale, cg=consigliere di gestione, c=consigliere di amministrazione

Fonte: elaborazioni Il Sole 24 Ore su dati delle relazioni sulla remunerazione e documenti societari

Fora da banca e para Itália vejam-se exemplos de fora da banca quanto a ordenados:

Possível? Possível. E também é possível que os salários, bónus e opções de ações para os gestores de Fiat continuem a subir. Pelo que sabemos, apenas num, só ano, o de 2008, Gianluigi Gabetti, presidente da Ifil, empresa-mãe da Fiat, ganhou  US $ 6,672 milhões de euros. Marchionne ganhou 3.418.600 euros. Luca Cordero di Montezemolo, em seguida, ainda presidente da Fiat e da Ferrari, ganhou 3.328.200 de euros. Mas a lista é ainda longa: Carlo Barel di Sant’Albano, executivo-chefe da Ifil,  ganhou 1.519.000 euros; Daniel John Winteler, conselheiro de Ifil e Presidente executivo  da Alpitour, ganhou 1.319.000 euros; John Elkann, o atual Presidente, que em 2008 foi o número dois, esse ano arrecadou 925.700  euros; Virgilio Marrone, diretor executivo da Ifil, 832 mil; Liberto Ruy Bradolini d’Adda, vice-presidente da Ifil, 742 mil;  Giovanni Coboldi, antigo presidente da Juventus, 711 mil euros.

A conclusão é única: a ganância não tem limites.

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