CONTOS & CRÓNICAS – CARLOS REIS – OS ARTIGOS IMPUBLICÁVEIS – DESABAFOS TELEMÓVEIS

 

Estamos fecundados, em certas áreas de progresso, os poucos de nós que acham que o telemóvel é um objecto útil porque  justamente serve para telefonar e ser telefonado. E a nossa fecundação será efectivada a breve trecho e com certeza, pois não tarda irão deixar de fabricar telemóveis pequenos, discretos e honestos (e baratos) como os nossos e seremos obrigados a consumir aqueles caixotes de duas dimensões, cheios de abstrusas e inúteis inutilidades..

Eu bem reparei, há dias, no olhar misto de desprezo e comiseração da uma diligente e azougada jovem vendedora destes artefactos, ao notar a minha preferência por um anacronismo telemovível e barato que por acaso ali estava  – certamente  resto de alguma colecção de telefones do século XIX, teria ela pensado, se soubesse que houvera  um século XIX –  e que adquiri como substituto do meu falecido anterior aparelho. Até me tratou, com um aparente paternalismo, por “querido” mas isso eu creio não passar  de um linguajar próprio e moderno destas vidas e idades.

A verdade é que começam a preocupar-me os amigos a quem envio textos, notícias ou fotografias, cujas eles lêem e vêem (e até respondem) a partir daquela pretensiosa geringonça modernaça e escorregadia. Há uma opressão descontrolada e apressada quando estão sós e perplexos, por novidades, revelações e confissões de momento, no seu diário viver, na sua respiração opressa, na sua solidão angustiada. Movimentam-se ansiosos, pelas suas ocupadas e conturbadas vidas, a ver os emails a tempo inteiro, nos restaurantes, nas paragens dos transportes, nas passagesn de peões, no vermelho dos semáforos, nos supermercados, em escadas rolantes, no cinema, nos urinóis públicos. Já não estão para ir ao computador quando chegam a casa.  Possivelmente vão a correr sentar-se na sanita, de smartphone em punho, a ler e a debitar naquilo, por entre melancólicas puxadas de autoclismo.

A dificuldade (ou incapacidade) de se estar só e consigo mesmo, parece ser realmente um factor transversal deste nosso tempo.

Será que na praia vão para dentro de água de smartphone à cintura ou mesmo entre os dentes, telefraseando Camões?  Parece que já os há à prova de água, estanques e com possibilidades de mergulhar, escrever sms’s, consultar emails e mesmo telefonar, até cem metros de profundidade.

Mas, mais a sério, como é que se pode ler (ou ver) alguma coisa, que não seja um simples sms, naquelas merdas deslizantes?

Lerão eles as obras completas de Shakespear ou a poesia do Alexandre O’Neil naquela caca viscosa, no intervalo de uma vistoria displicente às 847 fotografias da filharada, netada, cônjuge, gato, papagaio e paisagens?

Dizem os que discordam de mim que estamos velhos e desajustados. Pois. Parece que quem não deseje ou necessite de consumir alguma novidade electrónica, por anódina ou inútil que seja, não passa de um conservador, ou mesmo de um reaccionário. Às vezes, em almoços com amigos, em que há sempre interessantes e interessadas conversas e se coloca uma qualquer dúvida, salutar, pertinente e interessante –  em vez de se discutir ou aventar ideias, saltam logo de dentro de alguns deles uns ecrans tabléticos (a lembrar as ardósias da escola, no formato) que põem em cima do prato, mergulham na wikipedia e explicam tudo, por entre sorvos e garfadas.

Já quase não se conversa, se trocam ideias ou conhecimento, se comunica, enfim, sem ser através destas extensões, desta espécie de próteses cerebrais. Não tardaremos a poder usufruir de um encaixe frontal ou parietal, com uma porta USB, onde se poderá enfiar um cabo directamente ligado aos chips mais íntimos daquele molusco rectangular.

Carlos

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