CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 2. PARADOXOS EM MACROECONOMIA E A MODERNA ECONOMIA POLÍTICA (4ª PARTE), por HEINER FLASSBECK

Selecção, tradução e dedicatória por Júlio Marques Mota

Paradoxos em macroeconomia e a moderna economia política (4ª Parte) – A contribuição de Wolfgang Stützels para uma economia racional

Heiner Flassbeck

(CONTINUAÇÃO)

3. A concorrência entre as nações

 

O terceiro exemplo do fracasso da ciência económica moderna também está diretamente relacionado com as lições da crise económica global e a maneira como a teoria dominante defende o abandono da política monetária e orçamental. No contexto da globalização, a moda consiste agora em falar sobre a concorrência não somente entre as empresas, mas também entre nações e atribuir assim, em certa medida, ao sector económico “estrangeiro” um papel ativo na regulação da economia.

A política económica desde muito cedo colocou no centro das suas preocupações a concorrência entre as empresas no sentido próprio do termo, o mesmo é dizer em estudar como as empresas atuam no mercado e como procuram obter vantagens sobre os seus concorrentes. Considerou-se constantemente que a manutenção e o desenvolvimento das regras com que os atores operam sobre os mercados, como uma missão que incumbe naturalmente ao Estado. A concorrência entre as empresas de facto só pode gerar os resultados desejados apenas se esta não for neutralizada pelas posições monopolistas ou pela tentativa de essa concorrência ser determinada pelo jogo de poder económico. Os Estados Unidos, por exemplo, desde o final do século XIX puseram em prática uma legislação anti-trust extremamente detalhada.

Um dos pontos-chave de qualquer legislação anti-trust é o esforço para impedir, através de normas anti-dumping, essa forma de concorrência desleal quando uma empresa, usando deliberadamente consideráveis recursos económicos, por exemplo intencionalmente aceita perdas temporárias em certos setores de atividade, pois está a tentar expulsar do mercado outros concorrentes e ganhar assim uma posição de monopólio. Mesmo sendo difícil fornecer provas de tais práticas de dumping neste ou naquele caso particular, ninguém contestará que o dumping é possível e que a longo prazo são os consumidores a serem prejudicados, o que requer, por este facto, que o Estado tome contramedidas.

No entanto, com o avanço da globalização, a ideia de uma concorrência, não só entre empresas, mas também entre Estados começa a ganhar adeptos, concorrência em que o que está em causa seria o sítio de produção mais favorável para os investidores e a melhoria das condições importantes para as indústrias exportadoras. Mas, se a concorrência entre as empresas já precisa de ser regulamentada, os Estados podem eles, devem eles, entrar em concorrência uns com os outros, sem regras supranacionais?

O risco de abuso, isto é, de concorrência desleal, é, obviamente, muito mais importante no contexto da concorrência entre os Estados do que no contexto das empresas. Uma empresa que, a fim de excluir os seus concorrentes do mercado, reduz drasticamente os preços para um produto específico em si expõe-se ela mesmo a alguns riscos. Devem ser suficientemente fortes noutros setores para resistir a essas perdas durante algum tempo, enfraquecendo assim a sua posição para vir a ter sucesso no longo prazo. Esta situação também ocorre no caso de falarmos não em concorrência entre empresas mas de concorrência entre os Estados. Se um governo renuncia por exemplo, para tornar atrativa à escala internacional a tributação sobre as empresas, a desenvolver as infraestruturas públicas, pode ter sucesso no curto prazo, mas também pode enfraquecer a longo prazo a competitividade sustentável do seu espaço.

Os Estados dispõem no entanto, em comparação com as empresas, recursos adicionais quando se trata de promover o emprego local. Os governos podem convencer as pessoas, pela força ou pela persuasão, da necessidade de reduzir de forma sustentável o seu nível de vida para vir a ter sucesso nas suas exportações. Se conseguem assim este objetivo, esses governos não estão, geralmente, ao contrário de empresas, sujeitos à obrigação de sucesso rápido, porque a mobilidade internacional da população é muito limitada e por muitas razões. Portanto, se um país consegue aplicar uma política de apertar o cinto, por conseguinte a viver abaixo do seu potencial, pode permanentemente intervir nos mercados internacionais e manipular os resultados do mercado a seu favor.

Curiosamente, esta prática não é de modo nenhum posta em questão no domínio das subvenções públicas. Ela já o é mais no caso dos cortes de impostos, o que se chama de dumping fiscal entre Estados. Ainda menos se tem conta do perigo de uma tal política no caso de dumping salarial, por exemplo, quando a evolução dos salários é bem mais lenta em comparação com que os ganhos de produtividade obtidos[1]. O que todos esses casos têm em comum é que não se deve perder de vista as repercussões internacionais, mesmo se desejadas por razões puramente nacionais, que resultam de tais medidas.

É por esta razão que a afirmação, frequentemente repetida, de que a cooperação internacional seria certamente desejável mas irrealista, passa completamente ao lado do problema. A questão não é de se saber se cooperação é desejável ou não mas é sim, e sobretudo, a de saber quais são as consequências da concorrência entre as nações, ou seja, de uma atitude deliberada de não-cooperação, para a comunidade internacional. Se imaginarmos estas consequências podemos, em grande parte, dispensar refletir ainda sobre a necessidade de cooperação. A ausência de cooperação ou pior, a guerra económica entre as nações não pode, em caso algum, constituir uma resposta à globalização.

Mas essa forma de transposição à escala dos Estados do modelo microeconómico da concorrência entre atores de força mais ou menos igual está sobrecarregada ainda por outros erros, o mais grave dos quais é o de confundir os custos mais baixos sob qualquer forma que seja com a concorrência entre as empresas. Logo, a ideia de que a concorrência interempresas é sempre imediatamente rentável e benéfica para o desempenho económico global de uma economia não é totalmente correta. Quando uma empresa reduz os seus custos, ela aumenta, sem dúvida, a sua competitividade e regra geral aumenta a sua quota de mercado. Mas o que é verdadeiro para uma empresa vale igualmente para todas as empresas? Será que não existe, à luz da lógica de Lautenbach, os jogos de soma zero em que ninguém fica a ganhar?

Consideremos um caso simples. Seja uma empresa que reduz os seus custos, reduzindo os chamados custos indiretos, tais como as contribuições para eventos científicos e culturais, ou reduzindo os custos de viagem e representação dos seus funcionários. Esta redução de custos na empresa em questão significará necessariamente menores receitas em outras empresas. Portanto, estas últimas também devem realizar reduções nos seus custos e assim reduzir as suas despesas gerais. Isto acabará por levar a despedimentos nalgumas empresas. Isso também irá diminuir os rendimentos das famílias e, portanto, irá reduzir as suas despesas para adquirir bens que são, naturalmente, também produzidos por empresas. Se o Estado ajuda os desempregados, há aumento dos gastos e queda das receitas por se passar a receber menos impostos. Se, por outro lado o Estado mantém o seu défice constante, reduzindo os gastos com outros itens, é mais uma vez as receitas das empresas que diminuem porque o Estado e as famílias estarão a comprar menos.

O simples facto de que uma empresa reduza os seus custos e deste modo consiga poupar nem sempre conduz, à escala macroeconómica, a uma melhoria da situação das empresas no seu conjunto, pois as despesas de uma empresa constituem as receitas de outra empresa. Esta forma de concorrência entre empresas não traz a solução para os nossos problemas económicos. A verdadeira concorrência entre empresas funciona de uma forma totalmente distinta. Se um empresário tem novas ideias sobre como combinar de um modo mais eficaz os fatores de produção já existentes, o trabalho e o capital, ele estará em condições de poder oferecer os seus produtos a um preço menos elevado que anteriormente. Neste caso, o resultado é outro completamente diferente. Todos os atores económicos têm agora mais poder de compra resultante da descida dos preços. Consequentemente, ou eles aumentam a procura de bens produzidos pela empresa pioneira, o que permite que esta produzir mais bens com os mesmos efetivos, ou então, graças ao poder de compra assim obtido, eles comprarão outros bens de outras empresas que assim contratarão mais pessoal, oferecendo deste modo possibilidades de emprego aos assalariados que não sejam necessários na empresa pioneira. Esta forma autêntica de concorrência entre empresas tem sempre efeitos positivos a nível macroeconómico – precisamente não é um jogo de soma nula – mesmo que isso exija de cada um uma certa mobilidade quanto à sua qualificação e quanto ao local e ao ramo de atividade para encontrar emprego.

Tem-se muitas vezes a tendência, precisamente na Alemanha, de transpor o modelo da concorrência entre empresas para a concorrência entre as nações. Mas qual dos dois tipos de concorrência se aplica às nações? As nações, são elas inovadoras, têm elas novas ideias, inventam elas novos processos de produção e novos produtos? Quem ousaria afirmar isso da maioria das medidas que têm consequências decisivas para a concorrência entre as nações? Essa possibilidade certamente não é de excluir, mas os cortes de impostos, por exemplo, que são a medida mais popular na concorrência internacional, certamente que não é uma medida inovadora, porque esses cortes forçam simplesmente uma nação a fazer o que outras nações já fizeram. Se podemos afirmar que isto irá resultar num melhor sistema fiscal para o mundo, certamente não o poderemos provar. Numa simples corrida à baixa dos impostos animados unicamente por considerações de concorrência entre localizações de produção, nem os Estados nem o setor privado sairão ganhadores. Se os governos forem demasiado longe nesta luta entre as nações, todos perderão porque os Estados acabarão por deixar de ser capazes de desempenhar as suas funções essenciais, e a eficiência do sistema como um todo vai obrigatoriamente diminuir.

O segundo mal-entendido diz respeito à reação dos concorrentes e ao ambiente económico em que agem as empresas de um lado e os Estados do outro. As empresas podem definir o objetivo de eliminar definitivamente do mercado um outro concorrente, seja por redução dos custos num espírito de dumping ou seja por inovação empresarial. Se é uma empresa inovadora que se impõe, o resultado global será certamente positivo. Mas os Estados não podem eliminar outros Estados com as armas da economia. E mesmo se eles pudessem eliminá-los isso não iria trazer nada no plano da economia. Um estado “eliminado” economicamente deixa de oferecer mais-fontes de rendimentos aos seus cidadãos, de modo que estes se pauperizam e não podem finalmente acabar por comprar os bens produzidos pelo estado “vencedor”. O Estado vencedor deve, portanto, para poder desfrutar da sua vitória, alimentar os cidadãos do Estado que perdeu a luta económica. Um exemplo particularmente significativo deste fenómeno é a Alemanha Oriental depois da queda do Muro de Berlim[2].

Mas, num primeiro tempo, um Estado ameaçado por uma derrota económica tentará encontrar respostas para esse desafio. Estas respostas diferem elas também profundamente dos meios de que dispõe uma empresa. Isto é o que se observou na Ásia durante os últimos anos, nos países a que se chamou os “pequenos tigres”. Tendo perdido pontos na concorrência internacional e suportando défices elevados nas suas trocas comerciais, estes países desvalorizaram as suas divisas e forçaram os seus cidadãos a apertarem o cinto. Os ganhos de quota de mercado de que os países ocidentais beneficiavam no início dos anos 90, particularmente a Alemanha, foram afinal de curta duração.

O livre comércio em mercados competitivos é justo e necessário. A concorrência empresarial pela inovação é o motor do desenvolvimento económico e, portanto, do nosso bem-estar, mas a abordagem neo-mercantilista de muitos estados ocidentais, cuja política só tende a melhorar a competitividade de um país, não pode senão fracassar a mais ou menos longo prazo, porque esta política não pode suscitar como resposta outra coisa que não seja o neo-mercantilismo de outros países. Se um tal desenvolvimento se reforça pelo efeito de pêndulo, a corrida à desvalorização ou à redução dos custos, tal como se pôde observar antes da crise económica mundial dos anos 30, são pois inevitáveis. Daí decorrerá inevitavelmente, se essas corridas à desvalorização ou aos custos mais baixos ocorrem, como é o caso agora, num contexto de inflação já muito baixo, uma deflação geral.

A concorrência entre as nações é sempre uma corrida para a desvalorização por outros meios. Esta é uma lição que será de especial importância para a União Monetária Europeia. Quando a arma da desvalorização, ou seja, a utilização desta forma particular de ilusão monetária, enfraquece, é então necessário um consenso entre os Estados interessados sobre o facto de que, se quisermos evitar uma tendência deflacionista ou até flutuações cambiais massivas, serão excluídas outras formas de desvalorização competitiva. Tanto quanto a nação permaneça o espaço no seio do qual são definidas as condições societais e culturais que determinam em última análise os resultados do processo económico, ou seja, o rendimento real e a produtividade, as nações devem garantir que os frutos dos seus esforços sejam recolhidos e consumidos localmente em vez de serem usados como instrumentos de uma desvalorização escondida na luta entre nações. Isto significa concretamente que os vários ganhos de produtividade dos Estados da União Europeia devem ser utilizados para aumentos salariais locais, de modo que os custos unitários do trabalho expressos em moeda nacional, e também em euros, aumentem apenas ao mesmo ritmo que as taxas de inflação esperadas e estabelecidas como objetivo pelo Banco Central Europeu. Os Estados não têm o direito de renunciar conscientemente em explorar este potencial de rendimentos se não querem obrigar outros países a reclamarem, a exigirem a transferência de rendimentos da parte dos países “vencedores” ou entrarem numa corrida deflacionista à descida dos custos salariais[3].

Mais uma vez, vale a velha fórmula tão ao gosto de Stützel, fórmula segundo a qual um só espectador pode levantar-se para ver melhor a passagem da procissão, mas isso não acontecerá se todos fizerem o mesmo. Estas questões têm tido um lugar de destaque no pensamento de Stützels. Ele tinha ficado profundamente impressionado pelo trabalho de Wilhelm Lautenbach que estava tal como hoje a debater-se contra a confusão moderna sobre a guerra entre as nações a correrem para uma crise económica global[4], num mundo globalizado.

No seu prefácio à obra de Lautenbach, Stützel escreveu:

Todos os países querem… exportar mais do que o que importam. É claro desde o princípio que não alcançarão este objetivo. Basicamente, em teoria, existem aqui duas possibilidades. Ou todos os Estados estão ativamente a promover as suas exportações e permitem a importação livre: num tumulto de perda nas trocas internacionais, o volume total de exportações irá subir sem que alguém tenha exportado mais do que importou, em suma. Ou – e isto é o mais provável e, infelizmente, sempre historicamente dado: procurar-se-á restringir as importações para alcançar ativamente um saldo de balança corrente. Assim, nenhum país pode continuar a aumentar as suas exportações. Pelo contrário. A aspiração geral de alcançar uma diferença entre o valor das exportações acima das importações levará pois ao declínio do volume total de trocas comerciais acumuladas. O resultado é a luta pelos mercados externos, uma concorrência internacional agressiva, a guerra, primeiro de todos contra todos e, finalmente, talvez de “Imperialismo, como fase superior do capitalismo[5] “

(continua)

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[1] Veja-se: Herbert Giersch: Der lachende Dritte, in: Wirtschaftswoche Nr. 39, 1997; Oskar Lafontaine: Wo ist der lachende Dritte?, em : Wirtschaftswoche Nr. 43, 1997.

[2] Este exemplo é, naturalmente, uma variante do problema discutido antes da Segunda Guerra Mundial sob o nome O problema das transferências. Tratava-se de determinar se os os “vencedores” poderiam exigir transferências à Alemanha “derrotada”, sem se prejudicarem eles próprios. Na famosa controvérsia Keynes-Ohlin, Keynes defendeu uma posição adequada em todos os aspectos, Ohlin defendia um ponto de vista insustentável. Isso não impediu que evidentemente tenha prevalecido a ortodoxia e ganharam as teses de Ohlin. O caso da Alemanha de Leste (eliminado e) demonstrou mais uma vez que a posição keynesiana é a única pertinente. Veja-se t : H. FLASSBECK : «Die déutsche Vereinigung – ein Transferproblem.», in : Vierteljahreshefte des Deutschen Instituts für Wirtschaftsforschung, 3/1995.

[3] Veja-se: Cf. H. FLASSBECK : « Und die Spielregeln für die Lohnpolítik ? – Über Arbeit­nehmereinkommen und Wettbewerbsvorsprünge einer Volkswirtschaft in der Europaischen Union », in : Franlcfurter Rundschau du 31.10.1997

[4] Veja-se: A. Korsch: Der Stand der beschäftigungspolitischen Diskussion zur Zeit der Weltwirtschaftskrise in Deutschland. In: Ramser/Timmermann/Wittmann (Hrsg.): Der Keynesianismus, Springer Verlag, Berlin, Heidelberg, New York 1981, S. 59–61

[5] Veja-se W. Lautenbach, pág. 9

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Para ler a 3ª Parte deste trabalho de Heiner Flassbeck, publicada ontem em A Viagem dos Argonautas, clicar em:

CRISE DA DEMOCRACIA, CRISE DA POLÍTICA, CRISE DA ECONOMIA: O OLHAR DE ALGUNS ANALISTAS NÃO NEOLIBERAIS – 2. PARADOXOS EM MACROECONOMIA E A MODERNA ECONOMIA POLÍTICA (3ª PARTE), por HEINER FLASSBECK

1 Comment

  1. Em que artigo da Constituição da República é que está escrito que há direito ao lucro financeiro? O direito à propriedade é sinónimo de direito ao lucro? Se os impostos são votados na Assembleia Legislativa, os lucros não deveriam sê-lo? A “economia” deve ser de troca ou de uso? A nacionalização de todas as grandes empresas não traria ao Orçamento do Estado um maior volume de receita com a consequente melhoria dos serviços necessários ao bem estar social. Que razão haverá para que quem trabalha por conta de outrem só tenha direito a um salário e que quem opta por trabalhar por conta própria tem salário e, também, quer ter lucro financeiro. O capital tem mais direitos que a venda do esforço individual do trabalho? A ciência económica é assim mas, é irrefutável, podia ser de outra maneira. Que palavra terá a Natureza? CLV

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