Selecção e revisão de Júlio Marques Mota. Tradução de Francisco Tavares.
O impacto na China e no estrangeiro do abrandamento do crescimento-1ª Parte
Michael Pettis, The Impact in China and Abroad of Slowing Growth
Carnegie Endowment for International Peace, 2 de Outubro de 2016
Este texto foi, em grande parte, algo que escrevi há um ano sobre o impacto de um reequilíbrio chinês sobre a economia mundial e, excepto quanto a este primeiro parágrafo, nada alterei. O texto que coloquei um par de semanas antes foi uma tentativa de explicar a importância de se considerar ambos os lados das contas financeiras nacionais de um país ao fazer previsões sobre o crescimento. A dado ponto do texto debato a dificuldade que a maioria dos economistas parece ter em incorporarem desequilíbrios persistentes nos seus modelos económicos. Escrevi que parece existir entre eles,
… uma incapacidade de compreenderem a economia como um sistema dinâmico no qual a) os desequilíbrios podem persistir e crescer durante muitos anos antes de eventualmente se reequilibrarem, b) quanto mais rígida for a estrutura institucional da economia, mais profundos desequilíbrios terão muito provavelmente, c) quanto mais tempo persistam, mais disruptivo será o reequilibrar, e menos relevante o “estímulo” que desencadeia o reequilíbrio, e d) há muitas maneiras pelas quais o reequilíbrio possa ocorrer, e o modo como de facto ocorra depende dos constrangimentos e rigidezes institucionais. Estes economistas parecem ter dificuldade em perceber que uma economia pode ter uma estrutura de endividamento muito desequilibrada, com a dívida a crescer a uma taxa insustentável, de modo que haverá uma significativa redução do crescimento no futuro, mas uma crise é tão somente um dos caminhos possíveis, e não o único caminho, e certamente não iminente, para que esta redução do crescimento no futuro possa ocorrer. É apenas quando a dívida é sujeita a uma “súbita paragem” que a crise pode ser inevitável, mas em muitos, senão na maioria, dos casos não ocorre uma crise.
Um amigo meu enviou-me, algumas semanas mais tarde, um artigo do Financial Observer acerca das opiniões de alguém chamado Brian Singer, chefe da dinâmica equipa de estratégia de alocação na William Blair [banca de investimento e gestão de patrimónios], no qual Singer discute a sua perspetiva sobre a China e faz referência de passagem às minhas opiniões:
“Toda a gente está consciente dos terríveis níveis de dívida da China e [o analista dos mercados financeiros chineses] Michael Pettis tem realizado algum trabalho importante, mas ele é a ‘Galinha Assustada’ da China,” diz Singer, referindo-se às suas previsões estilo-pânico. “Ele descobriu com a sua investigação que a China desenvolveu um monte de dívidas e tem razão. Todavia, a dívida da China em relação ao seu PIB está muito próxima do que se regista nos Estados Unidos e na Alemanha.
“Se estamos tão terrivelmente preocupados com os níveis da dívida da China em relação ao PIB, porque motivo não estamos igualmente preocupados com os dos Estados Unidos?” Na verdade, os Estados Unidos gostariam de ter os níveis de dívida em relação ao PIB e o crescimento dinâmico que a China tem, disse ele. “Os EUA estão a crescer a 1,5% e levariam uma eternidade para absorver essa dívida,” disse ele.
Não creio que Singer se refira àquilo que há muito defendo: que assim que a China começasse a reequilibrar-se o seu crescimento cairia aproximadamente 100-150 pontos por ano. Tenho sido muito consistente quanto aos tempos e isto foi precisamente o que aconteceu, e presumivelmente uma Galinha Assustada teria repetidamente feito a mesma previsão e estaria sempre errada. Suponho que Singer está a cometer o mesmo erro que uma série de outros analistas que estavam surpreendidos com a China. Provavelmente ele assume que em virtude de eu ter vindo a avisar desde 2006-07 que o crescimento chinês se tinha tornado estruturalmente dependente de um insustentável crescimento da dívida, apesar dos meus aditamentos, de quase sempre, de que não esperava a ocorrência de uma crise financeira (o que tinha começado a fazer precisamente devido à confusão de Singer sobre desequilíbrios e a incompreensão do modelo de crescimento da China estarem tão amplamente espalhados), deverei ter previsto também uma iminente crise financeira.
Singer, como a maioria dos analistas, não compreende de que modo profundos desequilíbrios e aumentos insustentáveis da dívida podem ser consistentes com constrangimentos institucionais que mantêm a continuação do processo durante muitos anos. Quando ele leu o meu trabalho sobre a dívida chinesa, num tempo em que, como a maioria dos analistas, ele estaria provavelmente fascinado com o modelo de crescimento da China, suspeito que ele assumiu imediatamente que eu apenas poderia estar a prever um iminente colapso, e por isso o facto de eu bem explicitamente rejeitar a ideia de um iminente colapso não ser algo que ele estivesse em condições de digerir.
A sua confusão acerca da dívida é mais geral. A sua ideia de que um nível de dívida que pode ser problemático para a China deve logicamente ser também problemático para os EUA sugere, claro, um fraco entendimento dos motivos porque a dívida importa e uma muito pouca familiaridade com a história da dívida nos países em desenvolvimento e nos países desenvolvidos. Já expliquei muitas vezes os motivos porque a dívida importa, mas praticamente qualquer gráfico que mostre os atuais níveis de dívida dos países classificados segundo o seu PIB per capita, ou mostre os níveis de dívida de países que caíram em situação de incumprimento, que reestruturaram as suas dívidas, ou de outro modo indicavam dificuldades financeiras, de novo classificados segundo o PIB per capita, mostra muito claramente que os países mais ricos podem aguentar níveis de dívida muito mais elevados.
Singer continua a fazer previsões de crescimento para a China que são, em minha opinião, muito irrealistas e que, se se revelassem corretas, seriam quase totalmente sem precedente na história, e não é claro para mim porque motivo algo tão sem precedentes não é considerado suficientemente extraordinário que justifique uma explicação:
“À margem, as coisas abrandaram e quando se junta tudo, a meu ver um crescimento de dois dígitos não é viável na China, mas isso não significa também que crescerá a 1% como o mundo desenvolvido,” diz Singer. “[Cremos que o crescimento da China] será de qualquer coisa à volta de 5%, o que é um pressuposto razoável para os próximos 10 a 20 anos…Sim [os problemas combinados que criam incerteza na China] são uma preocupação, mas não é o fim da China tal como a conhecemos.”
O pressuposto de que o crescimento chinês será em media à volta de 5% nos próximos 10 a 20 anos não é “razoável” de modo algum. Dada a relação entre o crescimento do PIB e o crescimento do crédito que tem sido óbvia há pelo menos uma década, um crescimento do PIB acima de um nível sustentável, um nível quase certamente abaixo de 3-4%, exige que a dívida cresça mais rapidamente que a capacidade do serviço de dívida, e à medida que o peso da dívida cresce, esse nível sustentável declinará posteriormente. Mesmo uma década de 5% de crescimento exigiria que os níveis de dívida chineses subissem dos atuais 250% do PIB para algo acima de 400%, o que para um país em desenvolvimento seria quase sem precedentes (digo “quase” porque poderá ter havido casos de países em desenvolvimento nos quais a dívida era mais elevada, mas somente após uma crise monetária ter forçado o aumento da dívida externa).
Mais importante ainda, como Singer e a maioria dos analistas não compreenderam, a única maneira como o crédito pode subir a esses níveis é se for adquirido e monetizado pelo banco central, caso em que a consequência seria uma pressão para baixo do crescimento do consumo das famílias. A simples aritmética sugere, nesse caso, que o único caminho para manter o crescimento do PIB em 5% exigiria transferência de rendimento dos governos locais de provavelmente 5% do PIB ou mais, e dadas as dificuldades políticas de gerar transferências de rendimento de 1-2% do PIB sequer, o que espero ver iniciar-se no próximo ano, duvido que este seja um dos pressupostos de Singer.
Não pretendo com isto bater em Singer. O amigo que me enviou o artigo incluiu-o entre vários outros porque pensou que mostrava as estratégias usadas pelos analistas que estavam atrasados na observação da vinda do ajustamento chinês, ainda que isso devesse ser óbvio desde há anos. Mas, como expliquei mais tarde, na mesma entrada do blog, sou menos cínico quanto aos motivos destes analistas porque penso que eles, genuinamente, falham em compreender como os desequilíbrios são criados, como podem persistir, e como afetam e são afetados pela estrutura das contas financeiras nacionais. É por isto que não conseguem distinguir entre profundos desequilíbrios e crescimento insustentável do crédito por um lado, e iminente crise por outro.
O que implica para o mundo um reequilíbrio da China?
Enquanto as hipóteses de um ajustamento disruptivo – incluindo uma crise financeira – estão claramente a aumentar, de momento assumirei, como o fiz desde 2009-10, que a China será capaz de fazer um reequilíbrio não-disruptivo. Nesse caso, prevejo que as taxas de crescimento do PIB continuarão a declinar cerca de 100-150 pontos base por ano até um nível que será em média de 3-4%, na melhor hipótese, durante o período de crescimento de 2012-22. O crescimento do rendimento das famílias e do consumo deverá ser, claro, mais elevado à medida que a China se reequilibra e deveria ser, em média, de 5-6% durante este período. Isto apenas ocorrerá se a riqueza for sistematicamente transferida, implícita ou explicitamente, do setor do Estado para o setor das famílias.
Porque já expliquei muitas vezes como este processo pode funcionar e onde é vulnerável à disrupção, o resto do texto incidirá em analisar o impacto de um reequilíbrio chinês não-disruptivo em várias áreas da economia chinesa e mundial. Antes de abordar cada um dos setores que penso serem relevantes, creio que poderia ser útil apresentar um quadro que aproveitei do blog de John Mauldin que ele retirou de Barry Ritholtz, que mostra a enorme extensão da presença da China nos mercados de produtos. O quadro deixa de fora a quota da China no consumo mundial da produção de minério de ferro, que penso seria de 63% em 2012, mas inclui a maioria dos produtos mais importantes.
1. Efeito nos metais
O quadro acima mostra porque motivo resultou muito fácil fazer aquilo que penso ter sido a minha única previsão de “galinha assustada” sobre a China. No final de 2011 e início de 2012 defendi que, em virtude de o reequilíbrio da China se ter tornado difícil de adiar muito mais tempo (na verdade começou, diria eu, em 2012), os preços da maioria dos metais industriais cairia 50% dentro do prazo de 3 anos e o minério de ferro provaria o valor de 50 dólares em 2017. Isto aconteceria tivesse ou não o reequilíbrio da China acontecido de forma não disruptiva.
Os preços dos metais caíram tal como previsto, e existe agora um debate bastante significativo sobre se, como dizia uma recente manchete do Financial Times, “a indústria mineira bateu no fundo”. Não estou tão confiante hoje como em 2011-12 em passar por cima da minha ignorância básica sobre a indústria de metais e prever os preços dos metais em grande parte com base nas minhas expetativas sobre a China, mas continuo a acreditar que os preços dos metais cairão – provavelmente para níveis não muito longe daqueles verificados na viragem do século (ajustados pela inflação e o fortalecimento do dólar).
Digo isto porque a China apenas iniciou o seu processo de ajustamento, e o crescimento do investimento ainda tem um longo caminho para cair. A procura mundial está estruturalmente fraca, provavelmente devido ao elevados níveis de desigualdade de rendimentos que tendem a reduzir o crescimento quer do consumo quer do investimento privado. Salvo se ocorresse um estrondoso crescimento na Índia nos próximos anos, possibilidade que não se exclui dado que a sua pobre infraestrutura garante um destino produtivo óbvio para os fluxos de investimento, não prevejo qualquer contrapartida para o contínuo declínio da procura de metais pela China.
2. Efeito na energia
Frequentemente sou questionado quanto ao modo como o reequilíbrio da China poderá afetar a procura de energia, mas não vejo que o meu enquadramento seja particularmente útil para responder a esta questão. À medida que abranda o crescimento da China e a procura muda de investimento para consumo, suponho que a procura de energia será menor porque, excepto quanto às aquisições de automóveis que terão atingido o auge na melhor das hipóteses, o consumo tende a ser menos intensivo em energia do que os tipos de investimento que dominaram a atividade chinesa no passado.
Contudo, tenho de confessar que estou muito menos seguro quanto a isto, e dado que as políticas podem interromper o lado da oferta, estou altamente perplexo com as oscilações dos preços da energia. A única coisa que talvez possa dizer com alguma segurança é que as tentativas da China para manter o atual crescimento na atividade económica, e com o seu ainda mais rápido crescimento da dívida, existe uma probabilidade crescente de um ajustamento disruptivo no qual o crescimento económico colapse subitamente, caso em que prevejo que os preços cairiam drasticamente.
3. Efeito nos produtos agrícolas
Diferentemente da procura de metais, a procura chinesa de produtos agrícolas será provavelmente muitíssimo sensível a se a China é ou não capaz de ter um reequilíbrio não-disruptivo segundo os pressupostos que enumerei anteriormente. Se consegue um reequilíbrio não-disruptivo, o crescimento do rendimento das famílias manter-se-á forte – aumentando 5-6% ao ano – enquanto a desigualdade de rendimentos estabiliza ou mesmo declina. A procura chinesa de bens alimentares continuaria a crescer acentuadamente, e suportaria, deste modo, os preços dos bens agrícolas, e isto será ainda mais provável se também a Índia tiver bons resultados como alguns prevêem.
Todavia, no caso de um ajustamento disruptivo, a procura de bens agrícolas não resistiria. Nesse caso prevejo que a procura de bens alimentares cairá acentuadamente, pelo menos durante alguns anos, porque o reequilíbrio da China assumiria então a forma de uma drástica queda do investimento combinada com uma queda do rendimento das famílias – queda esta menos brutal que a do investimento, mas não obstante uma queda. Nesse caso, juntamente com um consumo mais baixo assistiríamos provavelmente a uma reversão da mudança nos anos mais recentes em direção a uma alimentação mais intensiva em cereais (ou seja, menos consumo de carne).
4. Efeito na indústria transformadora de mão-de-obra intensiva no estrangeiro
Uma China reequilibrada deve acomodar, principalmente por razões aritméticas, uma mudança relativa da riqueza do setor do Estado para o setor das famílias. Se Pequim não der passos para promover esta mudança ela ocorrerá dolorosamente, em níveis mais baixos ou mesmo negativos do crescimento do PIB e o crescimento do rendimento das famílias a níveis talvez mais elevados em 2-3%. Se Pequim implementar políticas que acelerem esta transferência, o crescimento do PIB e o crescimento do rendimento das famílias serão maiores.
Contudo, existem muitas maneiras de transferir o rendimento, e é importante recordar de que o modo que seja utilizado é, em última instância, uma decisão mais política do que económica. Após muitos anos em que se atrasou em relação ao crescimento da produtividade, o crescimento dos salários recomeçou por volta de 2010, e embora preveja que isso vá continuar, a maioria das formas de transferência de rendimentos que estão implícitas nas reformas propostas no Terceiro Plenário [do Partido Comunista] provavelmente aumentarão o rendimento das famílias de modo indireto mais do que sob a forma de salários mais elevados. Além disso, um crescimento mais lento, principalmente no setor imobiliário, reduzirá pressões no sentido do crescimento dos salários.
Por este motivo suspeito que já vimos muito do ajustamento relativo que era provável que ocorresse sob a forma de aumentos salariais. Se a China continuar a caminhar em direção ao reequilíbrio, então, embora creia que os setores de fabricação de outros países em desenvolvimento continuarão a beneficiar, principalmente em países como o México, que foram duramente atingidos pela concorrência chinesa na última década, penso que salários crescentes na China não mais proporcionarão apoio para economias de baixos salários que concorram com a China como sucedeu no passado.
Digo isto sem grande segurança porque, como quero deixar sublinhado, embora possamos confiar razoavelmente em transferências relativas de rendimento do Estado para as famílias chinesas, temos de ponderar as formas sob as quais essas transferências ocorrerão como sendo amplamente o resultado de processos de decisão políticos, com base claro, nas condições políticas existentes à época. Uma Pequim que se preocupe mais, por exemplo, com os trabalhadores, incluindo os imigrantes, do que com a classe média urbana, provavelmente favorecerá mais o crescimento dos salários do que uma revalorização do RMB [Renminbi], taxas de depósito mais elevadas, ou outras formas de transferência que beneficiam a classe média urbana.
Crucial para qualquer analista deveria ser prestar atenção aos sinais políticos que emanem de Pequim. Contudo, por agora prevejo que a fabricação utilizando mão-de-obra intensiva no estrangeiro beneficiará menos do que nos últimos 3-4 anos do reequilíbrio da China.
(continua)
________