CARTA DO RIO – 165 por Rachel Gutiérrez

Infelizmente o assunto não pode ser outro: Em cinco anos, mais do que dobrou o número de registros de estupros coletivos no país feitos por hospitais que atenderam as vítimas. Dados inéditos do Ministério da Saúde obtidos pela Folha (Jornal Folha de São Paulo )  apontam que as notificações pularam de 1.570 em 2011 para 3.526, em 2016. São em média dez casos de estupro coletivo por dia.

Que significa isso? Estamos na segunda década do século XXI. As mulheres brasileiras conquistaram o direito ao voto em 1932, mas o Brasil ocupa apenas a 116ª posição no ranking de representação feminina no Legislativo. Na atual legislatura, elas passaram a ser 51 deputadas, de um total de 513 – o equivalente a 9,9%. No Senado, das 81 cadeiras, 12 são ocupadas por mulheres. As taxas brasileiras ficam abaixo da média mundial, que chega a 22% nos parlamentos, e os nossos números são ainda inferiores aos do Oriente Médio, com uma taxa de apenas 16%.  E as mulheres precisariam legislar em favor das mulheres…

Nas Universidades, a proporção de mulheres que publicam artigos científicos –principal forma de avaliação na carreira acadêmica– cresceu 11% no Brasil nos últimos 20 anos. Agora elas publicam quase a mesma quantidade que os pesquisadores homens (49%). Os dados mostram que, dentre os países pesquisados, Brasil e Portugal são os que mais contam com autoras em trabalhos científicos (49% do total). Porém, como narra uma cientista, “quando uma mulher é aprovada em um curso de pós-graduação, é comum ela ouvir de orientadores que não poderá engravidar para que a pesquisa não seja interrompida.” Cientistas mulheres são tão capazes quanto cientistas homens, mas isso “não se reflete em igualdade de salários e de oportunidades.”  Sabe-se que maior escolaridade e presença nos cursos de qualificação não se traduz em maiores rendimentos, e essa diferença se amplia conforme aumenta a escolarização.

A que se deve essa flagrante injustiça? À ideologia machista que continua a dominar a nossa cultura, evidentemente. E já me referi às origens (gregas) dessa ideologia num capítulo de Mulheres/ A Violência continua, que a nossa “Viagem” divulgou aqui em junho de 2013 (!):

 Até Homero, e para a grande Sappho, nossa matriz da poesia lírica,  era Afrodite a deusa do Amor. Mas na era clássica, “o sexo e o amor foram incorporados numa divindade masculina armada” – Eros ou Cupido, que aparece com uma espada ou uma flecha. Em  seus estudos multidisciplinares da História e dos   mitos, Riane Eisler aponta a coincidência entre esse acontecimento da esfera mitológica e a nova estrutura da sociedade, em que “o princípio primordial de sua organização é o medo e/ou a força”.  Alguns historiadores (homens) interpretam a dominação masculina, o espírito guerreiro, a verticalidade autoritária e a escravidão como “consequências inevitáveis” de uma “maior complexidade cultural e tecnológica”, ou como “o preço do progresso”, ou ainda como uma qualidade inerente ao processo civilizatório. Ora, já existem antropólogos e paleontólogos, homens e mulheres com suficiente isenção e liberdade imaginativa para entender que ao progresso material da falocracia correspondeu um fracasso e uma grande perda espiritual e emocional para a humanidade.

E, mais adiante, no mesmo livro aqui integralmente publicado, mencionei o papel do Cristianismo e da Igreja Católica na infeliz solidificação da falocracia e na persistência da discriminação das mulheres ao longo da História:

Jesus de Nazaré praticou a compaixão, a tolerância, a não violência e pregou o Amor. Salvou a adúltera do apedrejamento e uma “pecadora” foi quem lhe lavou e ungiu os pés na véspera de seu martírio. E não se lê nos textos dos Evangelhos que alguma mulher o tenha ofendido, traído ou negado. Nenhuma escarneceu dele durante a cruel Flagelação. Mas a Igreja secular apartou as mulheres e jamais permitiu que celebrassem a missa como os padres. Maria, Nossa Senhora, a mãe amantíssima de Jesus, passou a ser mais exaltada como Virgem do que como Mãe. São Paulo, que declarou que o celibato é superior ao casamento, recomendou às mulheres que se mantivessem caladas nos templos e cobrissem com véus as cabeças. A Igreja separou os homens das mulheres, preocupou-se obsessivamente com o sexto mandamento e culpabilizou o sexo como pecado. Em sua ideologia puritana e extremamente misógina, tudo se passa como se só os homens fossem filhos de Deus; as mulheres, filhas de Eva, encarnam a tentação, o pecado, o Mal.

Tudo isso tem impregnado a cultura ao longo dos séculos. Afinal, saibam os alienados e bárbaros estupradores de agora, ou não, a ideologia dominante no que se refere a gêneros, continua majoritariamente misógina e machista. Às vezes apenas dissimulada. É como o racismo mal disfarçado do Brasil, este suposto país da diversidade e da alegre miscigenação. “Não somos racistas!” costumamos dizer, mas não vemos negros nos clubes nem nos melhores restaurantes, nas gerências dos Bancos, na Diplomacia e no Parlamento, nos cargos mais elevados das Universidades, entre os grandes médicos e advogados, entre juristas – com raríssimas exceções! – entre grandes empresários e magnatas etc., etc… Pois o machismo é o racismo contra as mulheres. Ninguém se diz machista, mas em todas as classes, homens espancam mulheres, desrespeitam-nas, humilham-nas, estupram-nas e as matam, matam tantas mulheres que foi preciso criar um novo conceito para esse crime, como se lê no Google:

Feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. Suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro.

É evidente que nem todo brasileiro é machista, estuprador ou feminicida, mas as estatísticas de violências, estupros e assassinatos de mulheres em nosso país são cada vez mais alarmantes.

Que podemos fazer? A resposta, me parece, é só uma: investir na Educação, na educação para a cidadania, para o crescimento individual e coletivo, para a convivência, para o respeito às diferenças, para a solidariedade, (para a Compaixão, como diz o budista Mathieu Ricard!), para o respeito à natureza, à História, à Vida, para a consagração e respeito dos Direitos Humanos, enfim.

Na Câmara, dos 513 assentos, apenas 51 são ocupados por mulheres Foto: Dida Sampaio/Estadão – 01.02.2015

 

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