Ela percorre a noite com a vida suja enfiada num saco, tentando vendê-la ao desbarato, enquanto a chuva pegajosa lambe as paredes negras sem lua, e os olhos caiem no chão dos curtíssimos horizontes de todas as incertezas.
No ar húmido paira um cheiro a palavras mortas e orações podres amontoadas numa lixeira, e o chão é um corpo inundado de terra enlameada de todas as virtudes.
Ela percorre a noite com a alma nua enfiada num saco, esperando que do espesso… nevoeiro irrompa uma virgem vestida de branco com uma pedra de sol em cada mão.
Mas a noite negra e sem lua apenas lhe promete a morte de estar viva, porque o sol é uma mentira tão grande como a verdade das pernas enroladas no medo e na fraqueza.
Ela percorre a noite por entre os buracos da ilusão, com a vida suja e a alma nua enfiadas num saco, tropeçando nas horas e nos absurdos do sentimento.
E as dores são gemidos mudos entre a cama fria e o vestido rasgado, e os braços repartidos numa esquálida vaga de fundo entre carnes a desfazer-se.
Ela percorre a noite remotamente mansa, escorrendo o corpo injusto e servil da chuva oleosa de um céu faminto de tempestade, e ninguém lhe compra a vida nem a alma.
No duro sono de um vão de escada, a morte vestida de virgem branca espera pacientemente entre a vida e a alma, a hora de ser a ponte para os restos de um sonho.
Adão Cruz