A “Carta Constitucional”
Entre os movimentos separatistas que há algum tempo se multiplicam no universo da União Europeia para reafirmar, com várias medidas, a soberania dos confins de alguns Estados da União, os referendos realizados no passado dia 22 de Outubro em duas Regiões italianas, Lombardia e Véneto, para renegociar com o Estado italiano os termos da sua autonomia, têm características particulares. Se o “Brexit” corre o risco de transformar o Reino Unido num paraíso fiscal para mercados americanos e asiáticos, com graves danos quer para a estrutura sócio-cultural do Estado, quer para a União Europeia; e se a “revolução independentista” da Catalunha pôs em séria discussão o estatuto unitário da Espanha, com grande embaraço da Europa; os referendos na Lombardia e no Véneto foram convocados, por sua vez, para activar precisas normas constitucionais.
No título V da Constituição italiana, o art.º 116 atribui a cinco Regiões dos confins (Sicília, Sardenha, Trentino Alto-Ádige, Friuli-Venezia Giulia e Valle D’Aosta) «formas e condições particulares de autonomia, segundo estatutos especiais”, o que significa fundamentalmente receitas especiais e impostos reduzidos. Os artigos 117 e seguintes, pelo contrário, fixam as normas e as matérias específicas reservadas às directrizes autónomas das regiões com estatuto geral. Trata-se de 23 matérias, entre as quais assistência sanitária e hospitalar, educação e assistência escolar, museus e bibliotecas, turismo, transportes, etc., «sempre que as mesmas normas não contrastem com o interesse nacional e com o de outras Regiões».
“Paroni a casa nostra” (“Patrões em nossa casa”)
O vencedor absoluto da conmpetição referendária de 22 de Outubro foi sem dúvida o governador do Véneto, Luca Zaia, porque a reivindicação de uma maior autonomia para a sua Região foi aprovada com 58% dos consensos, enquanto na Lombardia os votos favoráveis foram apenas de 38%. O “slogan” que acompanhou a campanha referendária (“Patrões em nossa casa, retenhamos o nosso dinheiro”) pareceu convincente para os eleitores, sobretudo porque Lombardia e Véneto passam ao Estado somas muito maiores do que as que obtêm do erário para os serviços gerais (escolas, hospitais, etc.), enquanto as Regiões do Sul entregam menos do que obtêm para os mesmos serviços.
Para dizer a verdade, na sua acção de governo, Luca Zaia retomou algumas propostas fundacionais do movimento “leguista” das origens, como o federalismo fiscal, necessário preâmbulo para a separação das Regiões do Norte (a Padânia) do resto da Itália. Nestes últimos anos em que a “Lega”, sob a guia de Matteo Salvini, se tornou um partido de direita ultra-nacionalista com afinidades ao “lepenismo”, o governador do Véneto actualizou com astúcia o antigo estatuto separatista da “Lega Nord” na forma de um regionalismo, segundo ele “constitucional”. Porém, as suas exigências de um estatuto especial para o Véneto, semelhante ao do Trentino Alto-Ádige e Friuli, com ele confinantes, já sofreram a nítida recusa da “consulta constitucional”, assim como a sua decisão de instituir no Véneto um regime mais livre e permissivo do que o que é imposto pela lei nacional.
Assim, o sucesso plebiscitário do referendo véneto parece destinado a não ser actualizado como real proposta de lei: de facto, respeitando a lei constitucional, o governo central não poderá consentir às autonomias locais que retenham o superavit fiscal, pondo em discussão a ordem económica do Estado. Com esta lógica todos ficariam legitimados a não pagar os impostos e a arranjar-se. Nestes últimos tempos, além disso, por uma espécia de nemese histórica, a onda referendária apagou os próprios confins do Véneto porque algumsas cidades ou comunidades locais exprimiram a vontade de fazer parte de Regiões vizinhas, as que têm estatuto especial. Sappada, risonha localidade turística de montanha já se mudou legalmente do Véneto para o Friuli, enquanto Cortina, a pérola das montanhas Dolomiti, apressa-se a pedir a sua reunião com o Trentino Alto-Ádige.
Parece cada vez mais evidente que os poderes atribuídos aos órgãos regionais deverão ser enfrentados no âmbito de uma revisão global da proposta constitucional nesta matéria. A partir de agora, com excelente sentido de oportunidade, o governador da Emilia Romagna já iniciou contactos, nesse sentido, com o governo central, sem convocar qualquer referendo. O referendo de Zaia, por sua vez, com os mega-custos – 22 milhões de euros, soma modesta se confrontada com os 40 gastos na Lombardia – parece ser apenas uma manobra eleitoral destinada a assegurar à “Lega Nord” e a Zaia o domínio absoluto do Véneto na iminente campanha para as eleições gerais, com a passividade dos partidos da esquerda, os quais, empenhados nas suas divisões internas, ficarão à janela a olhar.
(tradução de Manuel Simões)